terça-feira, abril 01, 2025

Um encontro

Cena do filme "Rapsódia em agosto", de Akira Kurozawa
 

                “Não existe morte natural. Nada que acontece a um homem é natural, já que sua presença coloca o mundo em questão”.

Simone de Beauvoir

Nestes dias iniciais de 2025, estou passando alguns dias na minha terra de nascimento; aquilo que os antigos chamavam de “pátria”, “a terra dos pais”. É muito representativo realizar esse tipo de visitação. Ajuda-me a entender certos fenômenos, certos pensamentos; a organizar os sentimentos; a compreender a maneira como ajo; meus silêncios, minhas dúvidas, medos e minha disposição incansável para a casmurrice. Alguns fatos são admitidos ou compreendidos após o trabalho do tempo.

Esta semana, fui com minha mãe visitar aquela que é considerada minha madrinha. Há uma tradição entre os nordestinos e, talvez, em outras regiões do Brasil de, por estimação, dar o filho, quando este nasce, para que alguém seja padrinho ou madrinha. Tal escolha reflete um tipo de honra e potencializa laços de fraternidade. Evidencia-se nessa ação um certo lastro virtuoso, pois certas qualidades precisam ser analisadas. Geralmente, a escolha solidificará ainda mais a amizade entre as partes envolvidas. As gerações mais novas não entendem o significado desse tipo de escolha. O costume tem se perdido ao longo do tempo.

Não atribuo muita relevância a esse tipo de tradição, mas respeito o seu significado. Convocado por minha mãe, fui de maneira cordata. Era uma questão de honra que eu fosse visitar a comadre Bil. Cheguei a casa pequena, no bairro do Cajá, em Vitória de Santo Antão – minha cidade. A casa onde já estivera antes, é pequena, acanhada, despojada de conforto, espremida entre outras casas semelhantes. A rua de pedra irregular é estreita. Ao chegar, os vizinhos ficaram observando quem eram os forasteiros. Suas três filhas nos recepcionaram. Depois das amenidades iniciais, fui conduzido ao quarto para poder falar com ela. Em um espaço pequeno, abafado, sentada sobre uma cama, ela se encontrava. Acometida por uma cegueira, resultante de um glaucoma, comadre Bil aguardava com o seu aspecto pequeno e frágil. Falamos rapidamente. Dei a benção a pedido de minha mãe – um gesto que indicador de respeito. Aquiesci por entender o que o momento representava. Minha mãe – parece que intencionalmente saiu; fiquei sozinho com aquela figura pequena, habitada por memórias e vivências. Fazia um bom tempo que eu não dirigia a palavra àquela pessoa que se encontrava sobre cama, em um espaço exíguo, de aspecto encurvado. Olhei buscando resgatar outras memórias. Imagens dela ainda jovem. A memória não realizou exercício tão promissor.

Narrou-me com sua fala ordeira e contada, uma multidão de fatos. Passeamos pelo passado. Ela contou sobre como se tornou vizinha do meu avô, quando tinha dezenove anos de idade. Descreveu pormenores sobre os meus tios com uma desenvoltura bíblica. Falou sobre as árvores frutíferas que cultivara em seu sítio, antes da mudança para Vitória de Santo Antão, algo que se deu há quase quarenta anos.

Tenho memórias esparsas de como era a sua casa. A sala com plantas. Algumas trepadeiras. Suas filhas costumavam passar óleo de soja nas folhas para que elas brilhassem. O chão limpo. Os sofás rústicos. A imagem dela e do meu padrinho desenhada na parede. O bigode desenhado do meu padrinho. O corredor que levava à cozinha. Na caminhada que se fazia da sala à cozinha, era possível passar por dois ou três quartos. Um pano ordinário fazia o papel de cortina. Não era possível enxergar nada. Eram furnas misteriosas. Minha memória não consegue fixar nenhuma forma naquele espaço. A cozinha também é um espaço, em minha memória, sem móveis; não consigo formular qualquer silhueta de qualquer coisa.

A porta era daquelas com dois compartimentos. Era possível abrir a parte de cima e deixar a parte de baixo fechada. Da cozinha, era possível enxergar, do lado direito, uma ampla porção do sítio. Em certa ocasião, em um mês bastante chuvoso, aconteceu um episódio que permanece em minha cabeça. João Severo, meu padrinho, plantou um pé de banana nanica. Com a chuva, o adubo e a boa terra, a planta deu um cacho de banana enorme. A planta inclinava-se para o chão. O pé da planta era sustentado por uma estaca, que foi providenciada para que a planta não viesse abaixo. Em um dia qualquer, uma torrencial chuva, seguida de um vento uivante, ameaçava derrubar o pé de banana. Seria uma grande perda. Estávamos todos na cozinha. João Severo ao constatar o que estava para acontecer, saiu em disparada a fim de remediar o que parecia inevitável. Ele desejava firmar outra estaca. A chuva grossa e o vento vigoroso davam a aparência ao meu padrinho de uma figura pequena que lutava contra forças ancestrais. A camisa aberta e o chapéu de palha conferiam à sua aparência o aspecto de um xógum que enfrentava as forças naturais com bravia inteligência e resistência. Não lembro qual foi o desfecho da luta.

Relaciono a cena de João Severo em sua luta particular, épica, para não permitir que o pé de bananeira viesse a pique, por causa dos golpes lancinantes que tomava das forças naturais, com imagem da senhora pequena e frágil que caminha empunhando um guarda-chuva, em meio à tempestade, do filme “Rapsódia em agosto”, de Akira Kurozawa. A delicada figura curvada avança inexpugnável, decididamente. Tudo é grande para ela. Associo o meu padrinho a essa imagem. Sua teimosia resistente contra o vento rodopiante e a chuva espessa era a luta do pescador de “O velho e o mar”, de Ernest Hemingway. Enquanto conversava com ela, esses temas passavam pela minha cabeça como cenas de um filme.

Com 78 anos de idade, impedida de caminhar (perdeu o movimento das pernas, após uma queda e uma cirurgia sem sucesso), cega, ela depende das filhas. A certeza que me ficou é que há memórias vivas dentro dela. Sua lucidez é um farol na noite escura em que vive. O corpo impôs certos condicionamentos. Impedida de ver, ela lembra; sem possibilidades de locomoção, ela demonstra uma ambivalência entre a necessidade e a suficiência.

Fiquei com sua imagem pequenina. Impactou-me vê-la daquela forma. Daí, volto à frase de Beauvoir: “nada que aconteça ao homem é natural”. Somos mais que os determinismos biológicos do corpo. Todavia, só podemos ser no corpo. Dessa forma, somos a mistura da fragilidade corpórea com a potência dos afetos, ou seja, daquilo que nos faz ser e existir.

Suas filhas disseram à minha que ela chorou bastante quando fomos embora. Disse que gostou de ter conversado comigo. Verbalizou que gostaria de ter me visto, constatado como eu estou fisicamente.

Escrito em janeiro de 2025, em Vitória de Santo Antão-PE

segunda-feira, março 10, 2025

"O primo Basílio", de Eça de Queiroz.


Terminei a leitura de o “O primo Basílio”, de Eça de Queiroz. Confesso que estava precisando ler algo como o texto do escritor português. O livro é uma radiografia sobre os costumes da época em que foi escrito. Dentro das produções do autor português, o livro foi o segundo escrito pelo autor. O primeiro foi “O crime do padre Amaro”, de 1876. “O primo Basílio” é do ano de 1878.

Eça não é original. É possível observar que há forte influência do romance francês. Flaubert dita-lhe o esquema. Zola também é uma outra força que usa para criar os seus personagens. Não poderia ser diferente. Essas forças estéticas estão presentes em boa parte das produções romanescas do final do século XIX. Com Eça não poderia ser diferente. Ele procura ser um crítico, um dissecador dos costumes morais. Procura desnudar os vícios ocultos da burguesia e da pequena burguesia lisboeta. Nesse sentido, pode-se afirmar que ele senta à mesa e olha a paisagem como um observador cientificamente atento. O romance traz um narrador onisciente e em terceira pessoa.

A história possui um esquema. E isso pode ser observado no primeiro capítulo. Ele procura apresentar ao leitor quem são as personagens, os ideais, os vícios e os maneirismos. De alguma forma, a tese se desenha ali. Como em outros escritores realistas, Eça aborda o adultério e com isso procura colocar em destaque o papel da mulher. Flaubert já fizera isso – em 1856 – com Madame Bovary, um dos casos de adultério mais famosos da literatura. Nesse sentido, não há originalidade no romance eciano. Ele transporta para Portugal a estética realista a fim de expor provincianismo lisboeta, bem como suas doces contradições. O realismo propunha-se a isso.

O escritor realista é objetivo. Era sua intenção retratar da maneira mais fiel os vícios de determinada sociedade. Ele pode fazer isso de maneira sutil, realizando insinuações, como bem fez Machado de Assis aqui no Brasil. Dom Casmurro é um exemplo disso. Não há descrições de adultério, mas há a tese do adultério, há a rebaixada condição da mulher. O realismo de Eça segue para outra direção. Ele se apropria de elementos naturalistas para descrever certas passagens do romance. O objetivo dessa estratégia é inserir o leitor em uma atmosfera crua, em que a realidade se mostra da maneira mais eficaz. Com o realismo, escuta-se que, quando se está doente, é necessário que se faça uma cirurgia. Com o naturalismo, o interlocutor é levado ao próprio local da cirurgia a fim de que ela seja explicitamente constatada. Assim, O primo Basílio é um romance realista, mas repleto de passagens de crueza naturalista.

A história aborda a traição de Luísa. Bonita, ingênua, Luísa é o protótipo da personagem romântica. Ela acredita na paixão, nos arroubos, nas promessas feitas pelo indivíduo apaixonado, no caso, seu primo denominado Basílio. Jorge, esposo de Luísa, engenheiro bem-sucedido, viaja a trabalho. Passa largos meses fora de casa. Nesse ínterim, Luísa recebe a visita de seu primo recém-chegado do Brasil, onde enriquecera. Voltava luzidio. É evidente o seu desejo de possuir Luísa com quem já tivera um namorico em tempos passados. O reencontro fê-los reavivar o estampido da paixão. Luísa entrega-se completamente a ele. Trocam cartas apaixonadas.

Algumas dessas cartas são interceptadas por Juliana, uma das personagens que melhor demonstram um aprofundamento psicológico por parte do autor. O narrador procura nesse ponto torná-la uma opositora. Sua posição é de firme contraste, de ódio e ressentimento contra a patroa. Juliana representa os pequenos humilhados. Sua intenção com a perpetrada chantagem contra a patroa é conseguir valores financeiros que pudessem dar a ela uma certa tranquilidade na velhice. Inicia-se um jogo complicado entre as duas personagens.

Basílio, por sua vez, é o dândi vazio, oportunista. Assume o papel do canalha, do embusteiro. Ele responsabiliza Luísa pelo fato de a empregada ter furtado as correspondências. Sua preocupação é em poder usufruir das belezas do corpo de Luísa. Não seguirei com desfecho da relação entre os dois para que não sejam entregues os desfechos da obra.

Há outros personagens relevantes e marcantes que aparecem como fatos sociais. Um deles é conselheiro Acácio. Vale mencionar que conselheiro era um título ofertado pela nobreza portuguesa. Ele recebeu tal encômio pelos serviços prestados ao Estado. Acácio é a representação do banal, do inexpressivo. Veste-se de uma pompa sem conteúdo. Gosta das frases eloquentes, mas de pouco valor. É hipócrita em seu moralismo exemplar. Julião, o estudante de medicina, que procurava um lugar ao sol. É invejoso e interesseiro. Leopoldina é a adúltera assumida e, por isso, recriminada; possui uma má reputação.

Além disso, é importante refletir sobre a condição da mulher no século XIX a partir das lentes do autor português. O romance faz-nos refletir sobre como o casamento funcionava como um excelente negócio para os homens. Observe-se que, na obra, Jorge empreende uma relação extraconjugal, no período em que se encontrava fora de casa, a trabalhar no Alentejo. Todavia, ele passa desapercebido. Não faz parte do debate. O homem possui quase que um direito natural quando realiza essa incursão fora do casamento. Ele é compreensivelmente justificado. Luísa, por sua vez, é a figura que sofre as agruras da prisão psicológica. Recai sobre ela todo o peso das cobranças sociais.

Luísa é uma personagem frágil, sonhadora, sentimental; ela encarna o padrão feminino da mulher que esperava, quando jovem, juntar-se ao seu homem e experimentar os idílios somente encontrados nos romances de cavalaria. Percebe-se no romance que Luísa é uma grande leitora do escritor Walter Scott. O escritor inglês ficou famoso pelos romances ambientados na Idade Média, repletos de ideais heroicos. Afastadas da vida pública, da vida produtiva, do comércio, da cultura, da vida política, as mulheres eram ensinadas – desde cedo – a esperarem pelo “príncipe encantado”; ou seja, pela figura imarcescível que a conduziria ao ideal paraíso da felicidade.

Basílio desperta a paixão em Luísa pelo fato de ter acendido esses sentimentos de que ela era a mulher mais perfeita. O ludibrio a abocanhou por tudo de doce que ouviu do primo mau-caráter. Assim, Eça constrói personagens femininas repletas das estereotipias típicas do século XIX. As personagens femininas – no geral – carregam consigo uma disposição moral questionável e mobilizada a partir daquilo que esperavam dela e do papel social que passam a ocupar – Luísa é a adúltera; Juliana é a figura magra, feia, ossuda, chantagista, ambiciosa e que nunca se casara; Leopoldina é a adúltera e pervertida; D. Felicidade vive à cata de um casamento aos cinquenta anos, o que demonstra, do ponto de vista moral e social, uma perversão digna de ser reprovada.

O romance demonstra, na pessoa de Luísa, alguém que não se rebela. Eça mirou para os costumes da burguesia lisboeta, mas quem pagou um altíssimo preço foi Luísa. Ela morre de uma “febre mental”. A personagem é atravessa pelo remorso. Em “O primo Basílio”, os costumes de uma sociedade caduca e contraditória são expostos. Todos os personagens padecem; mas, as personagens femininas padecem mais que os outros.

quarta-feira, março 05, 2025

De que são feitos os dias? | Cecília Meireles

De que são feitos os dias?
– De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
– do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças…

 

Acredito que este seja um dos poemas que mais concentram o mistério de que é feita a vida. Cecília consegue criar paralelos, oscilações, fluxos antitéticos, que englobam o conteúdo da existência. Camus diz em "O mito de Sísifo" que só 'vive quem toma consciência do absurdo'. Sim. Vive quem consegue lidar com o absurdo das perdas proporcionadas pelo tempo; que consegue administrar as "vagarosas saudades" e as "silenciosas lembranças"; que se escancara - incompreensível - diante de si.

A existência só se torna plena para quem reconhece ser um vulcão gerador de "mágoas sombrias", mas que é capaz de "pequenos lampejos", de "vagas felicidades" e de "inatuais esperanças". Somos feitos de contradições, de movimentos inconscientes, gestados da cumplicidade daquilo que, muitas vezes, não controlamos e não sabemos da sua textura. A vida absurda é feita "de loucuras", "de crimes", "de pecados", "de glórias", de fracassos, de avanços... e retrocessos. Somos feitos "de medo". Misturamos muitas substâncias em nosso ser. Distraímo-nos a maior parte do tempo. Dentro dessa realidade "vivemos", avançamos, "choramos" com as resoluções desencontradas e, com isso, forjamos "sinistras alianças".



domingo, março 02, 2025

"Ainda estou aqui" - livro e filme

Li em janeiro "Ainda estou aqui", do escritor Marcelo Rubens Paiva. O livro inspirou o filme de Walter Salles. A leitura do livro se deu de maneira intensa, sem que pudesse desgrudar do seu texto. Escrito com forte sabor jornalístico, a história produz emoções variadas. Aos poucos, somos puxados para testemunharmos as particularidades daquela família de classe média  - tão comum, tão feliz - moradora do Leblon, um dos bairros mais famosos do Rio de Janeiro. Marcelo conta a história em camadas, até o desfecho central da história, que é a prisão e o sumiço do pai; e o jogo macabro de versões contado covardemente pelos verdugos da Ditadura; bem como a transformação pela qual sua mãe precisou enfrentar para conseguir continuar após a morte do marido. 

Hoje, tive a oportunidade de assisti ao filme encenado magistralmente por Fernanda Torres. Walter Salles, com uma condução impecável da história, conseguiu verter a história do livro para o cinema. Há toda uma expectativa criada - talvez - pela mídia acerca da possibilidade de o filme ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro. Acredito que isso não acontecerá. Não é o tipo de filme que Hollywood aplaude. Não há pirotecnias, espetacularizações, não há sangue, efeitos especiais na obra. Há, sim, a retratação da violência do Estado contra uma família. Há, sim, o luto, a dor, o medo e um tipo de "tortura" infringida à família que ficou. Eunice Paiva lutou para que a memória do seu companheiro não fosse obliterada. 
 
Medonho é saber que até hoje pouca coisa foi feita. Nenhum dos algozes foi preso ou sofreu qualquer punição. Três deles já morreram. Medonho é saber que há pessoas no país que se esforçam para que isso volte; que salivam, que riem, que fazem vista grossa à dor dos familiares enlutados. O filme presta um triplo serviço: (1) faz uma alerta para que o país nunca mais experimente um período como aquele; (2) presta uma homenagem a Eunice Paiva, que lutou pelo resgate da memória do seu marido; (3) honra a memória de Rubens Paiva, morto covardemente pelos algozes da Ditadura. 

Sei que o filme não ganhará qualquer estatueta, mas torceremos pela  pela maravilhosa Fernanda Torres, que rouba a cena. 


sexta-feira, janeiro 10, 2025

"Iaiá Garcia", de Machado de Assis.

 


                “O que ele tinha diante de si eram os campos infinitos da esperança”.

 

“Iaiá Garcia” é o quarto romance escrito por Machado de Assis. Pertence à fase conhecida como romântica. Ao longo desse período, além de “Iaiá Garcia”, Machado havia escrito “Ressurreição”, “A mão e luva” e “Helena”. O escritor conciliava a produção romanesca e a poética.  “Crisálidas” e “Americanas” são dois dos seus livros de poesia desse período. Além disso, o escritor buscava administrar uma vida bastante agitada, de muito trabalho; e enfrentava sensíveis problemas de saúde, que se complicavam por causa dos efeitos colaterais das incipientes medicações do século XIX. No final dos anos 70 daquele século, Machado completaria quarenta anos. Entraria na sua fase madura, ou seja, quando as grandes obras começariam a ser escritas.

Dos quatro romances iniciais do autor, “Iaiá Garcia”, certamente, é aquele em que já se percebe o grande escritor que surgiria a partir de 1881, quando da publicação de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. O romance “Iaiá Garcia” foi escrito ao longo do ano de 1877; todavia, só foi publicado no início de 1878, na Revista Cruzeiro para a qual Machado passou a escrever. Ou seja, trata-se de um romance folhetinesco.

Sua recepção foi morna. O livro é bem construído, há boas análises psicológicas; há aquele rigor machadiano. Sua arquitetura é boa. Pode-se dizer que é perfeita. Machado havia dominado a escrita texto romanesco. Já havia ali cintilações do Machado maduro. O triângulo amoroso entre Iaiá, Jorge e Estela possui aquelas reviravoltas típicas do romantismo. Os textos eram publicados em porções – capítulo a capítulo. Tinham uma ampla constelação de leitores, principalmente do sexo feminino. As moças casadoiras ficavam enlevadas com as reviravoltas; com as intrigas oriundas dos conflitos entre as personagens. Os conflitos eram amorosos. Sobressaíam os vícios escondidos nas aparências sociais – ciúmes, ganância, interesse, orgulho etc. 

No Machado da segunda fase – também conhecida como fase realista -, nota-se um aprofundamento da caracterização das personagens. E como diz Daniel Piza, isso “significa maior rede de implicações aos assuntos, tanto sociais e econômicos como morais e filosóficas”.  Três anos pós a publicação de “Iaiá Garcia”, o escritor carioca publicaria o livro que seria o marco divisor da literatura brasileira – “Memórias Póstumas”. O livro tira o autor dos esquematismos e lança no terreno das grandes questões humanas. Machado passa a ser o senhor das sutis ironias. Cada um dos seus textos que saem após o lançamento de “Iaiá”, funcionam como estudos sobre a condição do psicológica e filosófica do ser humano, bem como assume uma postura crítica e sardônica às questões nacionais. Brás Cubas é o retrato da burguesia nacional. 

Machado aos 68 anos de idade

No livro de 1878, observa-se o quanto Machado estava preso aos esquemas edulcorados. Nesse mesmo ano, em Portugal, Eça de Queirós publicou o demolidor O primo Basílio, uma obra cuja contundência fez a burguesia urbana olhar para os próprios pecados, para as próprias feiuras. O realismo ganhava forma. Não seria possível, após três anos repetir a mesma fórmula dos quatro primeiros romances. As várias contribuições em periódicos com contos, crônicas, resenhas e outras publicações, funcionaram como exercício para aquilo que ele seria depois.

“Iaiá Garcia” é um bom livro. Os personagens são previsíveis. Há aquele movimento típico das moças sonhadoras com o casamento, que funciona como mecanismo de ascensão social. Há o indivíduo macho (o herói), que enfrenta vicissitudes e agruras impensáveis até ficar com a moça que se mostra como uma estrela distante e inatingível; e após as voltas que o mundo dá, ela acaba por encontrar aquele que a perseguia. Trata-se de movimento circular que acaba por criar certa indisposição à medida que se vai lendo.

Apesar de ser Machado de Assis, sabe-se aonde aquilo vai chegar. Na fase madura, o escritor passou a conduzir os textos romanescos de outra forma. Quase sempre, a condução leva a caminhos inopinados. O herói não possui mais o esquematismo previsível. O que passa a vigorar é o devir, pois, afinal, a vida é feita de movimentos incertos e contraditórios. Essa é a mais fina ironia; e Machado capturou como ninguém essa máxima do universo.

quarta-feira, janeiro 01, 2025

O cinema em 2025 - Federico Fellini

 

No ano de 2025, escolhi o cineasta italiano Federico Fellini como o diretor a ser visitado e aprofundado. Já faz cinco anos que repito o mesmo procedimento: escolho um diretor e, em seguida, seleciono doze produções desse diretor. É um exercício bastante enriquecedor. Fazendo uma contabilidade bem básica, posso afirmar que já vi mais de quarenta clássicos imortais dessas figuras icônicas, que foram criadores de uma linguagem muito própria. Aliás, procuro sempre levar em conta esse critério para escolher qualquer nome.

Comecei com Tarkovski (2020); em seguida, passei por Bergman (2021); depois, Kurosawa (2022); logos após, Buñuel (2023); e, ano passado, Truffaut (2024). A dificuldade se deu apenas com Tarkovski, pois sua obra fílmica não passa de oito produções. Mas, pode-se afirmar que são oito galáxias pela grandiosidade.

A escolha de Fellini se deu pela importância que ele possui. Já tive o grato privilégio de assistir a algumas de suas produções – Noites de Cabíria, A doce vida, A estrada da vida, Ensaio de orquestra e 8 ½. É o que me vêm à memória. A estrada da vida e 8 ½ são produções que devem aparecer na lista de todo amante do cinema. São obras em que percebemos a grandiosidade e o olhar único do diretor. A doce vida é o diagnóstico deletério da sociedade do espetáculo. É sublime em suas luzes; mas denuncia a frivolidade. Uma crítica fina, mordaz, áspera ao jornalismo vampiresco de celebridades; ao desejo moderno por exposição. Por trás da aparência, do espetáculo, havia o niilismo e o vazio. O que Fellini diria se tivesse conhecido o efeito brutal das redes sociais na vida das pessoas nos dias de hoje? E Noites de Cabíria possui as tintas do drama bonito, italiano em sua dimensão mais ontológica; há um humanismo dignificador e esperançoso em sua abordagem. Já Ensaio de orquestra é uma comédia refinada. Uma crítica ao totalitarismo. Por outro lado, é uma demonstração da resistência dos grupos divergentes.

Por fim, as cinco obras foram responsáveis por sedimentar profundidade e uma qualidade do olhar. Não é possível sair de um filme de Fellini sem que a dimensão do político, da infância e do onírico não estejam presentes. Por causa desse efeito, criou-se o adjetivo felliniano para representar algo que possua características que fujam ao comum, cuja grandiosidade impressione pela eloquência que evoca.

Sendo assim, escolhi doze obras para ver ao longo de 2025. Dos doze, assisti somente a dois deles. Eis a lista:

1.       Amacord

2.       Os boas vidas

3.       A trapaça

4.       Julieta dos espíritos

5.       Abismo de um sonho

6.       Os palhaços

7.       Mulheres e luzes

8.       8 ½

9.       Noites de Cabíria

10.   Satyricon

11.   A cidade das mulheres

12.   A voz da lua


Minha intenção, ao longo de 2025, é assistir a 70 filmes. Ano passado, consegui cumprir a meta.

1.  Curvas da vida – dir.

2.  Megalopóle -

3. Gladiador II - 

4. Amacord - 

5. No lugar da outra - 

6. Veludo Azul -

7. Batalhão 6888 - 

8. Babygirl

9. Conclave

10.  A fratura

11. Um lugar

12. Ainda estou aqui 

13. Flow

14. Um completo desconhecido

15. 

16. 

17.