quarta-feira, outubro 22, 2025

"A alma encantadora das ruas", de João do Rio

 

"Se as ruas são entes vivos, as ruas pensam, têm ideias, filosofia e religião”.

João do Rio, in “A alma encantadora das ruas”.

 

                Durante certo tempo, alimentei um preconceito pueril, talvez, baseado em notícias propaladas pela mídia, de que o Rio de Janeiro era uma cidade caótica, babélica, sem quaisquer atrativos. Além disso, posso acrescentar que os atributos expansivos do carioca, causavam-me certa indisposição. Imaginava que o logro era o esporte favorito do carioca. Afirmava em minha aguda ignorância que o Rio de Janeiro seria o último lugar do país onde poria os pés. Meu radicalismo não permitia a admissibilidade de qualquer concessão.

                Em 2024, o que parecia impraticável acabou por se realizar. Passei cinco dias na cidade. Um tempo curto para averiguar, para flanar (uma francofilia muito usada por João do Rio) pela cidade. Fui a alguns locais importantes: Forte de Copacabana, Confeitaria Colombo, Museu do Amanhã, Pão de Açúcar, Cristo Redentor, à Academia Brasileira de Letras; caminhei pelo Centro histórico, lá tive a oportunidade de visitar o Gabinete Real de Leitura Português. Ainda ficou a sensação de que o Rio era uma cosmopólis, um local em que a história do país caminha ao seu lado; observa os seus passos. Em todos os bairros, há uma sensação de que uma personagem da cultura ou da política espreita você. As ruas e avenidas possuem nomes que fazem ecoar o passado como, por exemplo, o Bairro do Cosme Velho, local famoso por ter sido o bairro em que Machado de Assis viveu boa parte da sua vida; ou a famosa Rua do Ouvidor, um dos locais mais famosos e febricitantes das primeiras décadas do século XX. Ainda é possível encontrar a presença do Rio de Janeiro antigo na Rua do Ouvidor. Infelizmente, não fui até lá, apesar de ter me programado. O tempo foi insuficiente.

                Quando voltei do Rio, uma mutação havia se dado em mim – ainda bem. Os conceitos pequenos e apressados os quais eu possuía foram pulverizados pela certeza de que necessito voltar à cidade para uma nova incursão. Essa convicção se tornou mais patente após ler o indescritível “A alma encantadora das ruas”, de João do Rio. O livro reúne textos do autor sobre a cidade do Rio de Janeiro da primeira década do século XX. O Brasil era um país novo, governado por militares; monocultor, agrário, com uma população majoritariamente analfabeta; um país cuja fundação passava pela mistura de povos. O Brasil procurava se encontrar, modernizar-se. Afirmar a sua identidade. Daqui, olhava-se para a Europa, uma referência incontestável para as elites urbanas letradas. O próprio João do Rio era alvo dessa influência. O epíteto João do Rio, talvez, seja influência do nome “Jean de Paris”, que o escritor carioca encontrou em uma das suas viagens à capital francesa, tendo tomado de empréstimo o epíteto.

                O fato é que Paulo Barreto – o nome de batismo de João do Rio – era um indivíduo talentoso e que fez a sua fama no jornalismo.  Ele consolidou um estilo de jornalismo ambientado em locais, personagens do povo; em acontecimentos aparentemente banais. Seu estilo irônico em alguns momentos; realista ao extremo em outros, desenha as cores da cidade. Ele abre o texto do livro - crônica “A rua” -, com uma afirmação seca, direta, sem maneirismos, revelando o “amor” “absoluto” e “exagerado” que alimentava: “Eu amo a rua”. É assim, sem pudores, limpidamente, que ele declara, como se estivesse a justificar tudo o que vai ser lido nas 27 crônicas que povoam o livro.

                O escritor nasceu, em 1881, na cidade que tanto amou; morreu jovem, às vésperas de completar 40 anos de idade, em 1921. Caso tivesse vivido um pouco mais, teria testemunhado revoltas e a transformação da cidade. Antes mesmo que os intelectuais de 1922 lançassem seus manifestos, João do Rio já modernizava a prosa. O país com suas contradições estava presente em seus textos, pois João do Rio já era moderno antes dos modernistas. Luiz Antonio Simas afirma que “João do Rio é o escritor das encruzilhadas”. Ao afirmar isso, Simas chama a atenção para o fato de que os textos de João partem sempre de uma perspectiva da cidade que se vê e daquela que é ignorada, que fica em um plano secundário. E, talvez, nesse fato resida a maior qualidade dos seus textos: dar visibilidade àqueles fatos ignorados que constituem a cidade, a rua. Como ele dizia – “a rua tem alma”. A rua afirma o tempo todo; ela declara suas incongruências; perfila seus atores, seus exageros, suas vilanias, mas sua poesia também. “Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas, snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de sangue...”

                João do Rio era um homem que “flanava” pela cidade. Para ele, só era possível se apropriar dos distúrbios mais comezinhos da rua, caso a alma que deseja entendê-la, materializasse as implicações necessárias desse verbo. Ele mesmo explica: “Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali na esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os ajuntamentos defronte das lanternas mágicas , conversar com os cantores de modinha das alfurjas da Saúde, depois de ter ouvido dilettanti de casaca aplaudirem o maior tenor do Lírico numa ópera velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado um pintor afamado até a sua grande tela paga pelo Estado; é estar sem nada e achar absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja”.

                O escritor começou cedo no jornalismo. Atuou por mais de vinte anos na profissão. Fundou o seu próprio jornal – A Pátria. Alcançou fama ainda em vida. Era bastante conhecido na cidade do Rio de Janeiro. Viajou mais de uma vez para a Europa. Vestia-se à maneira de um dândi. Era um Oscar Wilde tropical. Inclusive, chegou a traduzir obras do escritor inglês – a peça dramática do escritor Salomé é um exemplo. Essa aproximação com o estilo wildeiano alimentava polêmicas. Ele parecia ignorá-las. Para além disso, repousava o fato de ele ser homossexual – embora, de fato, nunca tenha assumido que o era. Tentou por duas vezes ingressar na Academia Brasileira de Letras – a primeira em 1907; tendo conseguido na segunda tentativa, em 1910.

                O livro “A alma encantadora das ruas” é um estudo etnográfico sobre o significado da rua. O livro é dividido em um movimento – (1) O que se vê na rua; (2) Três aspectos da miséria; e (3) Onde às vezes termina a rua. Para João do Rio, tudo se transforma em um texto que acaba por declarar o que é a cidade. Os tatuadores, as orações do povo; as pinturas e os dizeres da rua; as tabuletas que indicavam os endereços; a religiosidade do povo; os trabalhadores da estiva; os moradores de rua; as mulheres mendigas; as crianças que moravam nas ruas. Ele constrói uma visão bastante generosa a respeito dos seres inviabilizados no espaço social.

O escritor costumava visitar os espaços e instituições da cidade. Um famoso exemplo é a ida às prisões. Nesses espaços, ele procurava entender o que levava aqueles homens e mulheres a estarem naquele espaço. Ele observava: os crimes passionais; aqueles que ficavam nas galerias superiores; como era o dia de visita; como viviam as mulheres detentas.

O livro é necessário, pois nos permite a constituição de um olhar completamente novo para as cidades; ou seja, o espaço urbano em que vivemos. O Brasil do século XXI, é bem diferente do Brasil de João do Rio. As cidades se agigantaram. Todavia, mesmo com essas mudanças incontornáveis, as ruas possuem uma mística que suplanta o tempo. Ele mesmo afirma: “a rua é um fator da vida das cidades”. É sua face mais real; a artéria por onde corre a sua vida.

Para aprofundar meus conhecimentos sobre o autor carioca, comprei o livro “João do Rio – Vida, paixão e obra”, de João Carlos Rodrigues. A leitura já foi iniciada.


segunda-feira, outubro 06, 2025

Memórias... um documentário sobre o professor Carlos Mota

Professor Carlos Mota

Semana passada, descobri que Mário Bispo, um dos grandes professores que eu já tive, leva a sua filhinha à escola onde o meu filho estuda. Nesses encontros fortuitos, porém novidadeiros e que infundem na gente uma ponta de satisfeita felicidade, ele acabou me chamado lisonjeiramente de "meu poeta". Não me julguei digno do elogio. Desconversei. Chamou-me assim pelo fato de eu ter escrito um texto sobre o professor Carlos Mota

Ele afirmou que haviam feito um documentário sobre a vida do professor Carlos Mota, assassinado em 2008, no Lago Oeste, local onde morava. A morte do professor Carlos Mota provocou grande comoção por tudo aquilo que ele representou para a educação de sua comunidade. Foi morto por fazer uma pequena revolução que progredia em um movimento ondulante e que começava a ganhar contornos no local em que vivia. Carlos Mota era diretor de uma escola no Lago Oeste. Seu trabalho estava impactando a comunidade e causando um sintomático incômodo ao mundo do crime. Resultado: foi alvejado covardemente por alguém da região que estava se sentindo incomodado pela sua entusiasmada atuação.

Fui aluno de Carlos Mota e ainda guardo boas memórias. Estudei com ele - caso não esteja enganado - nos idos de 2007 ou 2008. Durante um semestre no curso de Letras, tive o privilégio de escutá-lo. Era um grande orador. Falava de forma apaixonada sobre vários temas. Todavia, era visível a sua paixão pela educação, por uma educação emancipadora, que transformasse a realidade e nos fizesse compreendê-la. 

Naquele semestre, tivemos o privilégio de ler coletivamente "Não espere pelo epitáfio", livro de reflexões instigantes do ótimo Mário Sérgio Cortela. Os textos curtos, mas com instigantes reflexões filosóficas, iniciavam os trabalhos pedagógicos. Era como se estivéssemos para iniciar um grande banquete e aquelas leituras eram as entradas que alargavam ainda mais a nossa fome. Carlos de um tablado que se elevava alguns centímetros do chão, gesticulava, liberava uma sintaxe afiada, cortante, inspirada. Dizem os estudiosos que o nosso cérebro retém apenas aquilo que nos marca sobremaneira. Eu não teria como apagar aquelas lembranças. Em sala de aula, tento repetir essa mesma prática: sempre começo as aulas da sexta-feira com uma leitura-reflexão a respeito de um poema - Fernando Pessoa, Carlos Drummond, Cecília Meireles, Adélia Prado, Manoel de Barros, João Cabral de Melo neto etc. É uma forma de aprender com a beleza, com a singeleza dos versos, da poesia que se encontra em algum apenas esperando ser apreciada. O fato de fazer isso é uma reminiscência involuntária daquilo que aprendi com Carlos Mota. 

Lembro-me de que ele convidou os alunos para realizar uma visita ao local onde morava. Sua chácara ele chamava de "Brilho da Lua". Foi uma noite extraordinária. Imensamente generoso, ele abriu os portões de sua chácara para a turma inteira. Alguns levaram barracas para acampar. Era uma noite fria e brumosa. Naquele dia, teve música, dança, falas, risadas desmedidas, discursos, aprofundamento de ideias políticas. Recordo-me que, no outro dia, ele de sua casa e foi até onde os bravos alunos dormiam. Aproximou-se com um largo sorriso - uma das suas marcas. Franqueou-nos a sua cozinha. Não imagino que outro professor teria coragem de fazer isso. Pois Carlos Mota, alguém imensamente comprometido com a formação de cada uma nós foi capaz de fazê-lo.  

Olhando, hoje, à distância, essa postura apaixonada, capaz de incentivar, de provocar afetos, recordo os versos de Erasmo Carlos: "Gente certa é gente aberta". Carlos viveu as implicações desses versos. Era a pessoa certa para os grandes gestos, para as grandes e largas aberturas. Sua vida deu certo, pois ele não se fechou; abriu-se generosamente para ser com as pessoas com as quais encontrou - principalmente, seus alunos e as pessoas humildes. Era alguém com um grande potencial. Estava sempre aberto para as grandes ideias. Suas reflexões sempre promoviam a boa política, a abertura para a generosidade, para as ideais humanizadores. Abriam portas para realidades novas; para mundos anteriormente inacessíveis aos olhos acostumados ao comum, ao banal. Era, por isso, que ele era tão atraente. 

Mário Bispo disse que o filho do professor Carlos Mota produziu um documentário sobre o pai; que no processo de procurar informações sobre pai, leu o texto que escrevi lá em 2008. Fiquei um pouco atordoado por saber que havia muitas imperfeições de estilo e uma abundante imperícia gramatical naquilo que escrevi. 

Revisitei o texto; realizei algumas modificações para que ficasse mais palatável. 

Abaixo, o documentário produzido pelo jornalista Otávio Augusto Pereira Mota, filho de Carlos Mota. 

 

segunda-feira, setembro 01, 2025

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

XX 


O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.


O Tejo tem grandes navios

E navega nele ainda,

Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,

A memória das naus.


O Tejo desce de Espanha

E o Tejo entra no mar em Portugal.

Toda a gente sabe isso.

Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia

E para onde ele vai

E donde ele vem.

E por isso, porque pertence a menos gente,

É mais livre e maior o rio da minha aldeia.


Pelo Tejo vai-se para o mundo.

Para além do Tejo há a América

E a fortuna daqueles que a encontram.

Ninguém nunca pensou no que há para além

Do rio da minha aldeia.


O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.

Quem está ao pé dele está só ao pé dele.


CAEIRO, Alberto, Poesia (O Guardador de Rebanhos), ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, pp. 53-54 

domingo, agosto 17, 2025

"Sou eu responsável pelo meu irmão?" - Caim

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segunda-feira, abril 28, 2025

Cruz e Sousa - impressões após uma leitura

 

“Por que estradas caminhei, monge hirto das desilusões, conhecendo os gelos e os fundamentos da Dor, dessa Dor estranha, formidável, terrível, que canta e chora Réquiem nas árvores, nos mares, nos ventos, nas tempestades, só e taciturnamente ouvindo: Esperar! Esperar! Esperar!” 

Cruz e Sousa

 Passei quase três meses lendo a biografia sobre o poeta catarinense Cruz e Sousa, escrita por Uelinton Farias Alves. O livro é sem sombras de dúvidas um dos melhores já produzidos sobre o autor simbolista. É fruto de uma pesquisa exaustiva, sóbria, profunda, crítica, honesta. Acredito que faça jus à importância do poeta. Há ainda inúmeros fatos enevoados sobre o “Dante Negro” como ficou conhecido pelo brilhantismo com que manejava a palavra.

Cruz e Sousa é um dos poetas mais marginais da história da literatura brasileira. Ao longo de sua curta existência, buscou incansavelmente o reconhecimento, que somente veio após a sua morte. Destinado a ser mais um negro em um país de escravos, Cruz e Sousa viola o determinismo histórico. Nascido em Santa Catarina, na cidade de Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis (homenagem dada ao marechal Floriano Peixoto), de pais alforriados, Cruz e Sousa conseguiu, graças a uma boa educação patrocinada pelo ex-senhor dos seus pais, o marechal Guilherme Xavier de Sousa, um lugar de honra entre os intelectuais brasileiros. O militar lutara no Paraguai. O poeta também herdou dele o sobrenome Sousa.

O garoto João estudou no Liceu Catarinense, a melhor escola da província. Recebeu esmerada educação em latim, grego e francês. Além disso, estudou com alemão Fritz Müller, um botânico e entusiasta das ideias de Charles Darwin. É possível observar o quanto essa formação foi fundamental para o poeta. Sem isso ele não teria chegado tão longe na máquina de moer gente que era a sociedade escravista do século XIX, cujos índices de analfabetismo eram altos. As escolas eram frequentadas pelos filhos das elites – barões, militares graduados, donos de terra, políticos etc. Poucos negros conseguiam um lugar ao sol.

Um fato, por exemplo, execrável ocorreu em 1883. Recomendado como promotor para o município de Laguna, foi recusado por ser negro. Esses episódios se repetiriam ao longo de sua vida. É possível que tenha se dado mesmo com a sua literatura. Em um país de negros, mulatos e miscigenados, o preconceito era uma realidade experimentada em diversos setores da sociedade. Como conceber um negro culto, capaz de dominar francês e latim em país que experimenta um apagão nas letras?

Participou de diversos periódicos. Chegou a fundar um, mas que não teve vida longeva. Foi preciso sair de sua cidade natal e viver o desterro. Migrou para o Rio de Janeiro, capital do Império e, mais tarde, da República. Procurou participar do centro convulsivo da intelectualidade Brasileira. Afinal, no Rio de Janeiro viviam Machado de Assis, um mulato reservado e que, apesar da fama e da origem, prefere o indiferente silêncio a manifestar publicamente qualquer simpatia a Cruz e Sousa, mesmo nos momentos mais críticos da vida do poeta. No Rio, vivia Olavo Bilac, que“limava” os seus versos como parnasiano que vivia em torre de marfim. Os críticos José Veríssimo, Silvio Romero e Araripe Junior. Mesmo José do Patrocínio, é-lhe indiferente.

Todavia, não estava sozinho. Nestor Vitor e Oscar Rosa são figuras fundamentais. Eles sempre estão presentes dos momentos mais complexos da vida do poeta. Até mesmo na hora da morte, os dois acorrem para que o reconhecimento devido do poeta ocorra. No Rio de Janeiro, o poeta escreve incansavelmente. Sua produção era quase que industrial. Produzia textos em prosa e poemas. Era-lhe fácil, quase que corriqueiro sentar e escrever sonetos carregados de lirismo, de individualismo, de uma musicalidade incomum. Como nos famosos versos: 

Ah! plangentes violões dormentes, mornos,

Soluços ao luar, choros ao vento…

Tristes perfis, os mais vagos contornos,

Bocas murmurejantes de lamento.


Noites de além, remotas, que eu recordo,

Noites da solidão, noites remotas

Que nos azuis da Fantasia bordo,

Vou constelando de visões ignotas.


Sutis palpitações à luz da lua,

Anseio dos momentos mais saudosos,

Quando lá choram na deserta rua

As cordas vivas dos violões chorosos.


Quando os sons dos violões vão soluçando,

Quando os sons dos violões nas cordas gemem,

E vão dilacerando e deliciando,

Rasgando as almas que nas sombras tremem.



Harmonias que pungem, que laceram,

Dedos nervosos e ágeis que percorrem

Cordas e um mundo de dolências geram

Gemidos, prantos, que no espaço morrem…


E sons soturnos, suspiradas mágoas,

Mágoas amargas e melancolias,

No sussurro monótono das águas,

Noturnamente, entre ramagens frias.


Vozes veladas, veludosas vozes,

Volúpias dos violões, vozes veladas,

Vagam nos velhos vórtices velozes

Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.


Tudo nas cordas dos violões ecoa

E vibra e se contorce no ar, convulso…

Tudo na noite, tudo clama e voa

Sob a febril agitação de um pulso.


Que esses violões nevoentos e tristonhos

São ilhas de degredo atroz, funéreo,

Para onde vão, fatigadas do sonho,

Almas que se abismaram no mistério. […] 
 
Era notável a capacidade do poeta para criar sinestesias. Ele consegue isso por meio de aliterações, recurso que costumava usar em seus poemas. A aliteração é um recurso fônico que intensifica a musicalidade.

Mais tarde, o antropólogo francês Roger Bastide diria que Cruz e Sousa foi um dos grandes simbolistas do mundo. E a grande questão é: como Cruz e Sousa conseguiu tão grande proeza? Como já afirmado, o poeta só conseguiu o reconhecimento após a sua morte, aos 36 anos de idade. Tuberculoso, em um gesto de desespero procurou as serras de Minas Gerais, junto com a sua esposa Gavita, grávida de quatro meses, a fim de procurar uma melhora para o seu estado deplorável de saúda. Hospedou-se em uma pensão, mas veio a óbito. Foi transladado em um vagão de trem que transportava animais. No cubículo fechado, sem janelas, o chão conspurcado pelas ejeções dos animais, o corpo violado pela tuberculose pesava cerca de 40 quilos. Apenas coberto por tecido ordinário, o trem descia tal qual uma serpente trazendo os restos mortais de um dos mais geniais poetas da língua portuguesa. Recebeu a alcunha de Dante Negro, de Cisne Negro, Diamante Negro, Magoado Eleito, Tedioso e Torturado Sonhador, Grandiosos e Imaculado Cenobita, Arcanjo Rebelado. 
O livro de Uelinton Farias Alves

Conhecendo a sua vida, entendemos a afirmação de Bastide. A afirmação de que Cruz e Sousa fazia referências à cor branca por ser preto é uma grande aberração. Uso da palavra para o poeta seguia um método. Como diz Alfredo Bosi, o poeta era esquemático. Costumava usar “substantivos abstratos” e “processos sinestésicos” e o encadeamento de construções que mais o aproximava dos parnasianos. Cruz e Sousa não é parnasiano no conteúdo, mas o é na forma. Seus poemas são rigorosos. Se fazia poemas rigorosos e quase parnasianos, por que o poeta não logrou sucesso em vida? Responder essa pergunta não é tão fácil, mas existem algumas pistas:

(1)    A questão racial. Cruz e Sousa era um homem negro. É possível que esse aspecto tenha chamado atenção e a barreira da cor tenha sido um elemento que criou um inevitável impedimento.

(2)    O fato de o poeta não ser do Rio de Janeiro. Era um tipo de forasteiro. O julgamento talvez surgisse em forma de pergunta: “Quem é esse negro que veio de longe?” “Chegou ao nosso meio querendo causar”. A intelectualidade que domina também é formada por panelinhas.

(3)    O fato de os poemas simbolistas não encontrarem lugar em um meio eivado de parnasianismo. À época de Cruz e Sousa, além do parnasianismo na poesia, o realismo e o naturalismo eram concepções estéticas que estavam em voga. O simbolismo era um tipo marginal de expressão estética. Enquanto na França havia capturado os intelectuais, no Brasil, ele ficou como elemento estético periférico. Além disso, os intelectuais brasileiros flertavam filosoficamente com o positivismo, rechaçado pelos simbolistas. O simbolismo procurava enfatizar o irracionalismo, a morte, o misticismo, a religiosidade, o satanismo, a sensualidade, a subjetividade acentuada (individualismo), a musicalidade, as sinestesias. Enquanto o naturalismo e o realismo fincavam o pé no mundo real, o simbolismo era transcendentalista à procura da forma, da intuição, do vago, do impreciso. Apalpava-se o vazio, um vazio repleto de elementos intangíveis, impermeáveis. Cruz e Sousa manifesta-se assim em seus famosos versos:

"Ó Formas alvas, brancas, Formas claras

De luares, de neves, de neblinas!...

Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...

Incensos dos turíbulos das aras..."

Ou seja, filosófica e esteticamente o poeta não atendia aos requisitos para entrar no clube dos intelectuais cariocas. É preterido quando da formação da Academia Brasileira de Letras. Machado, o grande idealizador da confraria, imitando a Academia Francesa, não realiza nenhuma distinção ao poeta. Desse modo, a vida do poeta foi marcada pela preterição. Ao longo do tempo, sua obra ganhou visibilidade graças aos esforços dos amigos.

Após sua morte, houve uma espécie de conversão de alguns intelectuais à sua obra, embora outros permanecessem indiferentes e solenes, como é o caso de Machado de Assis. Sua alma angustiada e solitária alçava voos imaculados à procura da indizível forma. Em um mundo maculado pela indiferença, pela injustiça, pelo orgulho, sua rebelião se fazia por meio de seus versos trabalhados com disciplina e paixão.