Olá, minha doce querida!
Estou com as minha defesas assaltadas neste momento. Toda minha serenidade me aflige no centro de gravitação da alma. Uma impaciência descabida e “enxerida” me esbofeteia sem escrúpulos. Desejo vê-la. Essa distância é atroz e faz crescer dentro da gente algumas nuvens desconhecidas. Uma morrinha arrebenta a encharcar a nossa paciência. Preciso vê-la, porque você é o meu sol, a luz que exorcizará esse negrume denso que me envolve.
Lá fora sopra um vento morno. Choveu a manhã inteira. O regato que contemplo à distância transbordou e inundou a várzea. O estrídulo de grilos e o coaxar de sapos se faz ouvir. Nuvens de insetos brotam, fervilham das gretas das paredes velhas. O canavial recém nascido é sacudido por um vento tímido. Um peru imperializa o quintal com o seu glu-glu-glu. Os perus sempre me chamam a atenção pela postura arrogante. Sinto prazer em admirar as aves da minha avó. Um pontozinho insignificante – um trabalhador braçal – arenga com a enxada no meio dos seixos e raízes molhados. Possivelmente os pensamentos dele são alimentados pela esperança. Não sei quem é o homenzinho que gasta a sua energia no trabalho rude.
Olho pela janela acanhada do meu avô um sítio, ou melhor, dizendo, um povoado que um dia foi denominado Engenho Cacimba. Foi nesse lugar rústico que eu nasci. Foi daí que eu fui chamado à vida. Parece que até hoje ainda a estou procurando. É um trabalho meticuloso. Temos que nos vestir com sobriedade, esperança, resistência, fé, amor, disciplina. Ás vezes desespero. Noutras ocasiões sinto o desejo de pular do muro alto que se ergue à minha frente e acabar com os sortilégios de uma existência tacanha. O que é a vida? Pergunta que se bem pensada, silencia-nos. O silêncio é algo que nos desloca, incomoda. O Engenho Cacimba é uma choça povoada por matutos. Já foi um lugar próspero. Lembro-me quando os caminhões aportavam em busca de álcool e açúcar. Matérias que traziam prosperidade à gente do lugar e alimentava a sede e a gula do Brasil. Hoje não se tem mais engenhos por essas brenhas. As usinas açucareiras monopolizaram o negócio. Ainda se pode ver a torre, a chaminé que um dia cuspiu fumaça no céu do Nordeste. Hoje temos apenas cinzas do que já foi. Não nasci propriamente no engenho, mas numa localidade que geograficamente era chamada de Engenho Cacimba. Sou um cacimbense. Talvez seja por isso, que preservo essa personalidade circunspeta, de bicho acuado, malfadado. O meu mundo de dentro está como o mundo de fora: nublado.
Tem chovido com veemência por essas paragens. No dia em que cheguei em Vitória de Santo Antão fui recepcionado por uma chuva que me molhou os conceitos e a alma. Nesta madrugada a chuva caiu rija. Nestas condições os açudes sangram, os ribeiros envergam o seu curso para as várzeas; os lugares baixos são alagados. O sertanejo acostumado ao calor escaldante e esfolador das plantações deifica o céu. Os santos são sugestionados. Mitos e superstições são evocados. Histórias antigas de outros invernos são mencionados.
Para onde eu olho vejo o verde saindo de sua câmara. É belo o show da vida! Pareço que estou voando para longe por tudo o que vivo, sou, pretendo ser neste momento. Queria tê-la perto de mim. A Pastoral de Beethoven é doce, esvoaçante, amiga de lembranças, nave que impele ao mundo dos sonhos. Sinto como o jovem Werther do romance de Goethe. Será que um dia essa carta será lembrada por alguém? Se dá isso, Liana: quando alguém fica famoso fazem um diagnóstico na infância do indivíduo. Um papel antigo com uma escrita turva, ordinária, sem sentido certo, tem um valor inenarrável. O que você acha que aconteceria se eu tivesse em minhas mãos uma carta de Machado de Assis nunca antes vista, escrita para a sua mulher Carolina, no período do namoro deles? Já pensou na preciosidade? Começo a pensar que o tempo dá valor às coisas, sugere opiniões, acata fatos, subscreve sentenças. Mas eu não sei se um dia serei famoso. Daí não saber se a minha caligrafia afetada e o meu estilo deficiente causará impressão em alguém. A vida é uma incógnita. Vida medonha. Vida bela.
Esses dias na casa dos meus avôs têm sido maravilhosos. As lembranças da minha infância sempre causam impressões misteriosas. Os trovões que ouço na abertura das “Criaturas de Prometeu” de Beethoven falam disso. É sempre a sensação, uma retro-alimentação constante, perene, intermitente. É como seu eu andasse por reinos encantados, forrado por tufos de um material algodoado. É um reino sem fim. Todo lugar é prazeroso e por mais que ande nunca cessa o mistério e as impressões colhidas nesse mundo encantado.
Minha avó está na cozinha a preparar o almoço. Esse sempre foi o seu trabalho – para mim – extenuante. Desde os dezenove anos gastando-se na beira do fogo. Vai manhã, vem tarde e ela com sua paciência pachorrenta e inalterável. Sempre com o mesmo temperamento. Nunca a vi alterada por qualquer fato buliçoso. Desconfio que ela seja uma santa.
Meu avó é um tipo primitivo, modelo dos antigos senhores de engenho. Patriarca. Sempre com os beiços enrugados. Numa sisudez de assustar os anjos. A casa dos meus avós maternos é um asilo de traumas e medos enlatados em conserva. Os filhos têm um respeito – medo – encabulador do pai, meu avô. Ele os criou em regime de servidão. Surras sobejas, trabalho duro e rude foi a alimentação vitaminada que eles receberam com fartura. Hoje ele está com setenta e nove anos, mas ainda preserva os traços severos do patriarcalismo castrante e antigo. Um olhar dele ainda arrepia os cabelos da alma dos filhos.
Quando eu era pequeno passei muitos sustos com ele. Um rabo de olhos congelava-me as ações, paralisava-me o coração, emudecia a minha loquacidade, mofavam os movimentos ágeis e libertários de minha infância. Vejo isso sendo reproduzido nos meus primos.
Já caminhei bastante por essas terras que abrigou, gravou, tatuou os passos de minha infância. Os pés de côcos altearam-se; as jaqueiras envelheceram; as distâncias se tornaram pequenas; as casas reduziram o tamanho; muitos mistérios foram revelados; e alguns enigmas permaneceram mudos, trancafiados, silenciosos e inacessíveis. Um dia pretendo trazê-la aqui. Agora tenho mais fotos. Quando chegar aí conversaremos mais a respeito do que tratei aqui e de algumas impressões que foram cosidas no meu espírito e se aninharam nos galhos da minha alma. São fenômenos estranhos, alheios, impressões mastigadas e que vão para o túmulo coma a gente. São aquelas coisas captadas pelos radares da nossa sensibilidade e que se enrolam, engrolam, no torno, no cerne do nosso ser e trabalham à semelhança da natureza o que somos. É por isso que gosto de ler autobiografias. Todavia, os melhores livros que leio são as feições, os sorrisos, a seriedade, as contrariedades, a sovinice, a faceirice, os olhos, o andar – o ser humano. Isso acrescenta conhecimento do que sou: sou humano – sou duro, sou de ferro, sou orgulhoso, ignorante, nocivo a mim mesmo e aos outros, amante da vida, odiento aos conceitos contrários, preconceituoso, guardo mistério no desconhecido cavernoso de mim mesmo.
Tenho um volume de Graciliano Ramos à minha frente – Infância. Esse é um livro que tem acrescentado sensibilidade e apuro ao lado desconhecido de mim mesmo. Estou mudando. Talvez mudando para melhor. É o dia a dia que diz quem somos. É para o alto que se cresce.
Perdoe-me por expô-la a esses fiapos desenxabidos e desencontrados. Às vezes tenho surtos de falador. Perdoe-me pelas linhas chochas, apequenadas, toscas. A única coisa que se é que algo muito positivo vai acontecer este ano! Impressão mal cozinhada?
Viajarei dia 05 de fevereiro – quinta. Chegarei no sábado, 7 de fevereiro. Creio que antes disso ligarei para você. Um abraço e um cheiro.
Vitória de Santo Antão – PE, 27 de janeiro de 2004.
Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Estou com as minha defesas assaltadas neste momento. Toda minha serenidade me aflige no centro de gravitação da alma. Uma impaciência descabida e “enxerida” me esbofeteia sem escrúpulos. Desejo vê-la. Essa distância é atroz e faz crescer dentro da gente algumas nuvens desconhecidas. Uma morrinha arrebenta a encharcar a nossa paciência. Preciso vê-la, porque você é o meu sol, a luz que exorcizará esse negrume denso que me envolve.
Lá fora sopra um vento morno. Choveu a manhã inteira. O regato que contemplo à distância transbordou e inundou a várzea. O estrídulo de grilos e o coaxar de sapos se faz ouvir. Nuvens de insetos brotam, fervilham das gretas das paredes velhas. O canavial recém nascido é sacudido por um vento tímido. Um peru imperializa o quintal com o seu glu-glu-glu. Os perus sempre me chamam a atenção pela postura arrogante. Sinto prazer em admirar as aves da minha avó. Um pontozinho insignificante – um trabalhador braçal – arenga com a enxada no meio dos seixos e raízes molhados. Possivelmente os pensamentos dele são alimentados pela esperança. Não sei quem é o homenzinho que gasta a sua energia no trabalho rude.
Olho pela janela acanhada do meu avô um sítio, ou melhor, dizendo, um povoado que um dia foi denominado Engenho Cacimba. Foi nesse lugar rústico que eu nasci. Foi daí que eu fui chamado à vida. Parece que até hoje ainda a estou procurando. É um trabalho meticuloso. Temos que nos vestir com sobriedade, esperança, resistência, fé, amor, disciplina. Ás vezes desespero. Noutras ocasiões sinto o desejo de pular do muro alto que se ergue à minha frente e acabar com os sortilégios de uma existência tacanha. O que é a vida? Pergunta que se bem pensada, silencia-nos. O silêncio é algo que nos desloca, incomoda. O Engenho Cacimba é uma choça povoada por matutos. Já foi um lugar próspero. Lembro-me quando os caminhões aportavam em busca de álcool e açúcar. Matérias que traziam prosperidade à gente do lugar e alimentava a sede e a gula do Brasil. Hoje não se tem mais engenhos por essas brenhas. As usinas açucareiras monopolizaram o negócio. Ainda se pode ver a torre, a chaminé que um dia cuspiu fumaça no céu do Nordeste. Hoje temos apenas cinzas do que já foi. Não nasci propriamente no engenho, mas numa localidade que geograficamente era chamada de Engenho Cacimba. Sou um cacimbense. Talvez seja por isso, que preservo essa personalidade circunspeta, de bicho acuado, malfadado. O meu mundo de dentro está como o mundo de fora: nublado.
Tem chovido com veemência por essas paragens. No dia em que cheguei em Vitória de Santo Antão fui recepcionado por uma chuva que me molhou os conceitos e a alma. Nesta madrugada a chuva caiu rija. Nestas condições os açudes sangram, os ribeiros envergam o seu curso para as várzeas; os lugares baixos são alagados. O sertanejo acostumado ao calor escaldante e esfolador das plantações deifica o céu. Os santos são sugestionados. Mitos e superstições são evocados. Histórias antigas de outros invernos são mencionados.
Para onde eu olho vejo o verde saindo de sua câmara. É belo o show da vida! Pareço que estou voando para longe por tudo o que vivo, sou, pretendo ser neste momento. Queria tê-la perto de mim. A Pastoral de Beethoven é doce, esvoaçante, amiga de lembranças, nave que impele ao mundo dos sonhos. Sinto como o jovem Werther do romance de Goethe. Será que um dia essa carta será lembrada por alguém? Se dá isso, Liana: quando alguém fica famoso fazem um diagnóstico na infância do indivíduo. Um papel antigo com uma escrita turva, ordinária, sem sentido certo, tem um valor inenarrável. O que você acha que aconteceria se eu tivesse em minhas mãos uma carta de Machado de Assis nunca antes vista, escrita para a sua mulher Carolina, no período do namoro deles? Já pensou na preciosidade? Começo a pensar que o tempo dá valor às coisas, sugere opiniões, acata fatos, subscreve sentenças. Mas eu não sei se um dia serei famoso. Daí não saber se a minha caligrafia afetada e o meu estilo deficiente causará impressão em alguém. A vida é uma incógnita. Vida medonha. Vida bela.
Esses dias na casa dos meus avôs têm sido maravilhosos. As lembranças da minha infância sempre causam impressões misteriosas. Os trovões que ouço na abertura das “Criaturas de Prometeu” de Beethoven falam disso. É sempre a sensação, uma retro-alimentação constante, perene, intermitente. É como seu eu andasse por reinos encantados, forrado por tufos de um material algodoado. É um reino sem fim. Todo lugar é prazeroso e por mais que ande nunca cessa o mistério e as impressões colhidas nesse mundo encantado.
Minha avó está na cozinha a preparar o almoço. Esse sempre foi o seu trabalho – para mim – extenuante. Desde os dezenove anos gastando-se na beira do fogo. Vai manhã, vem tarde e ela com sua paciência pachorrenta e inalterável. Sempre com o mesmo temperamento. Nunca a vi alterada por qualquer fato buliçoso. Desconfio que ela seja uma santa.
Meu avó é um tipo primitivo, modelo dos antigos senhores de engenho. Patriarca. Sempre com os beiços enrugados. Numa sisudez de assustar os anjos. A casa dos meus avós maternos é um asilo de traumas e medos enlatados em conserva. Os filhos têm um respeito – medo – encabulador do pai, meu avô. Ele os criou em regime de servidão. Surras sobejas, trabalho duro e rude foi a alimentação vitaminada que eles receberam com fartura. Hoje ele está com setenta e nove anos, mas ainda preserva os traços severos do patriarcalismo castrante e antigo. Um olhar dele ainda arrepia os cabelos da alma dos filhos.
Quando eu era pequeno passei muitos sustos com ele. Um rabo de olhos congelava-me as ações, paralisava-me o coração, emudecia a minha loquacidade, mofavam os movimentos ágeis e libertários de minha infância. Vejo isso sendo reproduzido nos meus primos.
Já caminhei bastante por essas terras que abrigou, gravou, tatuou os passos de minha infância. Os pés de côcos altearam-se; as jaqueiras envelheceram; as distâncias se tornaram pequenas; as casas reduziram o tamanho; muitos mistérios foram revelados; e alguns enigmas permaneceram mudos, trancafiados, silenciosos e inacessíveis. Um dia pretendo trazê-la aqui. Agora tenho mais fotos. Quando chegar aí conversaremos mais a respeito do que tratei aqui e de algumas impressões que foram cosidas no meu espírito e se aninharam nos galhos da minha alma. São fenômenos estranhos, alheios, impressões mastigadas e que vão para o túmulo coma a gente. São aquelas coisas captadas pelos radares da nossa sensibilidade e que se enrolam, engrolam, no torno, no cerne do nosso ser e trabalham à semelhança da natureza o que somos. É por isso que gosto de ler autobiografias. Todavia, os melhores livros que leio são as feições, os sorrisos, a seriedade, as contrariedades, a sovinice, a faceirice, os olhos, o andar – o ser humano. Isso acrescenta conhecimento do que sou: sou humano – sou duro, sou de ferro, sou orgulhoso, ignorante, nocivo a mim mesmo e aos outros, amante da vida, odiento aos conceitos contrários, preconceituoso, guardo mistério no desconhecido cavernoso de mim mesmo.
Tenho um volume de Graciliano Ramos à minha frente – Infância. Esse é um livro que tem acrescentado sensibilidade e apuro ao lado desconhecido de mim mesmo. Estou mudando. Talvez mudando para melhor. É o dia a dia que diz quem somos. É para o alto que se cresce.
Perdoe-me por expô-la a esses fiapos desenxabidos e desencontrados. Às vezes tenho surtos de falador. Perdoe-me pelas linhas chochas, apequenadas, toscas. A única coisa que se é que algo muito positivo vai acontecer este ano! Impressão mal cozinhada?
Viajarei dia 05 de fevereiro – quinta. Chegarei no sábado, 7 de fevereiro. Creio que antes disso ligarei para você. Um abraço e um cheiro.
Vitória de Santo Antão – PE, 27 de janeiro de 2004.
Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Nenhum comentário:
Postar um comentário