O filme O Perfume – a história de um assassino, do diretor Peter Tykwer, lançado em 2006, baseado na obra homônima de Patrick Süskind, é com certeza instigante sobre vários aspectos. Jean Baptiste Grenouille pode ser considerado uma espécie de anti-herói no filme. O filme induz o telespectador a inocentá-lo, apesar das mortes das mulheres promovidas pela paixão ensandecida. O personagem principal encenado pelo ator Bem Whishaw nos remete à aventura medieval da alquimia em busca da pedra filosofal, do elemento mágico, que permitiria alcançar uma condição impossível para as realidades humanas. A procura de “aprisionamento do cheiro das coisas” é justamente a orientação que o guia. Como um alquimista dos odores, ele faz experiências que levará a resultados cada vez mais profundos e atordoantes.
As habilidades de Jean Baptiste o transformam num indivíduo especial, como assim é dito ao iniciar o filme. Grenouille nasce em meio à imundície, numa feira nauseabunda da França do século XVIII (1738); nasce filho de uma peixeira, que tinha a intenção de matá-lo. É filho da gente pobre. Verifica-se neste aspecto a preocupação em descortinar o território francês com um Realismo que provoca repulsa. São cenas indigestas para apresentar a situação histórica que envolvia Jean Baptiste. A maioria dos transeuntes mal-cheirosos contrastam com alguns privilegiados da nobreza. A obra retrata uma França anterior à Revolução (1789). Uma sociedade fétida, de injustiças, roubos e extorsões. O personagem desenvolve atividades rudes, fatigantes, capazes de fazer com que o corpo morra muito cedo. Todavia, não se dá assim com Jean Baptiste, que parece ter uma alma que alimenta o corpo. O seu aspecto físico franzino não é um fator de impedimento para gestar as suas intenções obstinadas.
O Realismo da obra tem por finalidade impressionar e instilar “um tipo de recepção”, construindo uma tese que levará a um desfecho surpreendente nas cenas finais do filme. Afinal, fica-se com a impressão de que Grenouille é uma espécie de indígete, um homem divinizado. O receptor da obra passa a ser também advogado do personagem à semelhança do que acontece na praça publica, numa das cenas finais do filme. Os algozes que o matariam o inocentam e sucumbem ao poder do seu feitiço terrível.
Desde muito pequeno, Jean Baptiste dá mostras de uma sensibilidade incomum. Aprendeu a executar as suas experiências pelo olfato. Essa capacidade o faz apreender o mundo. Aprendeu que a natureza é um receptáculo de odores. Que ela abriga o imponderável, o misterioso. A fragrância dos elementos e das coisas são o espírito e a imaterialidade dessas mesmas coisas. Guy de Maupassant no conto Carta de um Louco cita Montesquieu e diz que “um órgão a mais ou menos em nossa máquina teria feito de nós uma outra inteligência”[1]. O grande contista afirma neste mesmo texto que as impressões limitadas do homem é a causa principal de certa forma de ser e perceber o mundo. Diz ele: “Se tivéssemos, portanto, alguns órgãos a menos, ignoraríamos coisas admiráveis e singulares, mas, se tivéssemos alguns a mais, descobriríamos em torno de nós uma infinidade de outras coisas que nunca suspeitaremos por falta de meios de constatá-las”[2]. O Perfume é a exatificação dessa percepção. Jean Baptiste possui a sensorialidade olfativa desenvolvida ao extremo. Ele é capaz de captar todas as fragrâncias do mundo, do universo e aí reside o seu poder de encantamento. Todavia, é incapaz de ter a “sensibiliade” que imporá limites às suas intenções mais macabras. As leis humanas são incapazes de puni-lo, de pará-lo. Ele vive apenas para a sua paixão, para o seu sonho de poder. Como no Fausto de Goethe, ele quer levar a cabo a possibilidade de um experiência ilimitada. Grenouille encarna as palavras de Fausto: “Natureza infinita, como poderei agarrá-la? / Onde estão as suas tetas, fonte de toda a vida [...] / por quem meu coração vazio anseia”[3]. A sinestesia que envolve o personagem é uma ponte que liga a alma do mundo material à singular capacidade de ordenar e enxergar os elementos interiores da subjetividade.
Um aspecto onírico perpassa a obra fílmica, pois o personagem vive quando quer viver e “morre” (desaparece) quando assim o quer. Este aspecto é imensamente simbólico, pois carrega em si um credo estético que sugestiona o vago, o misterioso, o ilógico, num tipo de expressão indireta, numa evocação encantatória da realidade[4]. A existência de Grenouille é uma fantasia do inconsciente. A estesia resultante da obra é de silêncio, de encantamento, de absurdo, uma quimera que mexe com os aspectos mais profundos da irracionalidade. Um senso de estupefação e uma pergunta surgem: “O que era aquela criatura?”
Esta obsessão por lidar com o intangível, com o mágico, com o inusitado remete à Escola Simbolista. O filme mais sugere e evoca o simbólico, do que atribui nomes a realidades e objetos, como designou o poeta maldito Mallarmé quando se posicionou acerca dessa Escola Simbolista[5]. Rimbaud outro poeta simbolista francês diz que a mensagem simbolista deve rebentar “de excessos abomináveis e imencionáveis”[6]. O Perfume exala esse artifício. Os elementos da fuga se tornam numa impressionante urdidura para fazer chocar ao telespectador. Ao final do filme, tem-se a idéia de que se saiu de um sonho, porque afinal o sonho não pertence às realidades desse mundo. A conseqüência da experiência é a sublimação, pois como diz o simbolista brasileiro Cruz e Sousa: “Toda a alma numa cárcere anda presa,/ Soluçando nas trevas, entre as grades/ Do calabouço olhando imensidades,/ Mares, estrelas, tardes, natureza”[7].
A experiência estética do filme é de algo diáfano. A música poderosa que soa suavemente ao final da obra infunde uma impressão de leveza. A fragrância do filme nos atinge, por conta da pessoa poderosa e misteriosa de Jean Baptiste Grenouille, que é mais que um homem – é uma alma celeste, divina, que se elevou para as imensidades, despregando-se das fealdades do mundo dos homens.
FONTES CONSULTADAS
BERMAN, Marshall, Tudo o que é sólido desmancha no ar, Companhia das Letras: São Paulo, 2007.
COUTINHO, Afrânio, Introdução à Literatura no Brasil, Editora Bertrand Brasil S.A. – 15ª. Edição: Rio de Janeiro, 1990.
MAUPASSANT, Guy, Contos Fantásticos – O Horla e outras histórias, L&PM Editores, Porto Alegre, 2005.
MILLER, Henry, Rimbaud por ele mesmo, Martin Claret, in Rimbaud – um estudo, A hora dos assassinos, São Paulo [s.d].
NICOLA, José de, Literatura Brasileira – das origens aos nossos dias, Editora Scipione, São Paulo, 1998.
[1] MAUPASSANT, Guy, Contos Fantásticos – O Horla e outras histórias, L&PM Editores, Porto Alegre, 2005, p. 53.
[2] Idem, 57.
[3] BERMAN, Marshall, Tudo o que é sólido desmancha no ar, Companhia das Letras: São Paulo, 2007, p.55.
[4] COUTINHO, Afrânio, Introdução à Literatura no Brasil, Editora Bertrand Brasil S.A. – 15ª. Edição: Rio de Janeiro, 1990, p. 213.
[5] Idem, p. 213.
[6] MILLER, Henry, Rimbaud por ele mesmo, Martin Claret, in Rimbaud – um estudo, A hora dos assassinos, São Paulo [s.d], p. 18.
[7] NICOLA, José de, Literatura Brasileira – das origens aos nossos dias, Editora Scipione, São Paulo, 1998, p. 218.
As habilidades de Jean Baptiste o transformam num indivíduo especial, como assim é dito ao iniciar o filme. Grenouille nasce em meio à imundície, numa feira nauseabunda da França do século XVIII (1738); nasce filho de uma peixeira, que tinha a intenção de matá-lo. É filho da gente pobre. Verifica-se neste aspecto a preocupação em descortinar o território francês com um Realismo que provoca repulsa. São cenas indigestas para apresentar a situação histórica que envolvia Jean Baptiste. A maioria dos transeuntes mal-cheirosos contrastam com alguns privilegiados da nobreza. A obra retrata uma França anterior à Revolução (1789). Uma sociedade fétida, de injustiças, roubos e extorsões. O personagem desenvolve atividades rudes, fatigantes, capazes de fazer com que o corpo morra muito cedo. Todavia, não se dá assim com Jean Baptiste, que parece ter uma alma que alimenta o corpo. O seu aspecto físico franzino não é um fator de impedimento para gestar as suas intenções obstinadas.
O Realismo da obra tem por finalidade impressionar e instilar “um tipo de recepção”, construindo uma tese que levará a um desfecho surpreendente nas cenas finais do filme. Afinal, fica-se com a impressão de que Grenouille é uma espécie de indígete, um homem divinizado. O receptor da obra passa a ser também advogado do personagem à semelhança do que acontece na praça publica, numa das cenas finais do filme. Os algozes que o matariam o inocentam e sucumbem ao poder do seu feitiço terrível.
Desde muito pequeno, Jean Baptiste dá mostras de uma sensibilidade incomum. Aprendeu a executar as suas experiências pelo olfato. Essa capacidade o faz apreender o mundo. Aprendeu que a natureza é um receptáculo de odores. Que ela abriga o imponderável, o misterioso. A fragrância dos elementos e das coisas são o espírito e a imaterialidade dessas mesmas coisas. Guy de Maupassant no conto Carta de um Louco cita Montesquieu e diz que “um órgão a mais ou menos em nossa máquina teria feito de nós uma outra inteligência”[1]. O grande contista afirma neste mesmo texto que as impressões limitadas do homem é a causa principal de certa forma de ser e perceber o mundo. Diz ele: “Se tivéssemos, portanto, alguns órgãos a menos, ignoraríamos coisas admiráveis e singulares, mas, se tivéssemos alguns a mais, descobriríamos em torno de nós uma infinidade de outras coisas que nunca suspeitaremos por falta de meios de constatá-las”[2]. O Perfume é a exatificação dessa percepção. Jean Baptiste possui a sensorialidade olfativa desenvolvida ao extremo. Ele é capaz de captar todas as fragrâncias do mundo, do universo e aí reside o seu poder de encantamento. Todavia, é incapaz de ter a “sensibiliade” que imporá limites às suas intenções mais macabras. As leis humanas são incapazes de puni-lo, de pará-lo. Ele vive apenas para a sua paixão, para o seu sonho de poder. Como no Fausto de Goethe, ele quer levar a cabo a possibilidade de um experiência ilimitada. Grenouille encarna as palavras de Fausto: “Natureza infinita, como poderei agarrá-la? / Onde estão as suas tetas, fonte de toda a vida [...] / por quem meu coração vazio anseia”[3]. A sinestesia que envolve o personagem é uma ponte que liga a alma do mundo material à singular capacidade de ordenar e enxergar os elementos interiores da subjetividade.
Um aspecto onírico perpassa a obra fílmica, pois o personagem vive quando quer viver e “morre” (desaparece) quando assim o quer. Este aspecto é imensamente simbólico, pois carrega em si um credo estético que sugestiona o vago, o misterioso, o ilógico, num tipo de expressão indireta, numa evocação encantatória da realidade[4]. A existência de Grenouille é uma fantasia do inconsciente. A estesia resultante da obra é de silêncio, de encantamento, de absurdo, uma quimera que mexe com os aspectos mais profundos da irracionalidade. Um senso de estupefação e uma pergunta surgem: “O que era aquela criatura?”
Esta obsessão por lidar com o intangível, com o mágico, com o inusitado remete à Escola Simbolista. O filme mais sugere e evoca o simbólico, do que atribui nomes a realidades e objetos, como designou o poeta maldito Mallarmé quando se posicionou acerca dessa Escola Simbolista[5]. Rimbaud outro poeta simbolista francês diz que a mensagem simbolista deve rebentar “de excessos abomináveis e imencionáveis”[6]. O Perfume exala esse artifício. Os elementos da fuga se tornam numa impressionante urdidura para fazer chocar ao telespectador. Ao final do filme, tem-se a idéia de que se saiu de um sonho, porque afinal o sonho não pertence às realidades desse mundo. A conseqüência da experiência é a sublimação, pois como diz o simbolista brasileiro Cruz e Sousa: “Toda a alma numa cárcere anda presa,/ Soluçando nas trevas, entre as grades/ Do calabouço olhando imensidades,/ Mares, estrelas, tardes, natureza”[7].
A experiência estética do filme é de algo diáfano. A música poderosa que soa suavemente ao final da obra infunde uma impressão de leveza. A fragrância do filme nos atinge, por conta da pessoa poderosa e misteriosa de Jean Baptiste Grenouille, que é mais que um homem – é uma alma celeste, divina, que se elevou para as imensidades, despregando-se das fealdades do mundo dos homens.
FONTES CONSULTADAS
BERMAN, Marshall, Tudo o que é sólido desmancha no ar, Companhia das Letras: São Paulo, 2007.
COUTINHO, Afrânio, Introdução à Literatura no Brasil, Editora Bertrand Brasil S.A. – 15ª. Edição: Rio de Janeiro, 1990.
MAUPASSANT, Guy, Contos Fantásticos – O Horla e outras histórias, L&PM Editores, Porto Alegre, 2005.
MILLER, Henry, Rimbaud por ele mesmo, Martin Claret, in Rimbaud – um estudo, A hora dos assassinos, São Paulo [s.d].
NICOLA, José de, Literatura Brasileira – das origens aos nossos dias, Editora Scipione, São Paulo, 1998.
[1] MAUPASSANT, Guy, Contos Fantásticos – O Horla e outras histórias, L&PM Editores, Porto Alegre, 2005, p. 53.
[2] Idem, 57.
[3] BERMAN, Marshall, Tudo o que é sólido desmancha no ar, Companhia das Letras: São Paulo, 2007, p.55.
[4] COUTINHO, Afrânio, Introdução à Literatura no Brasil, Editora Bertrand Brasil S.A. – 15ª. Edição: Rio de Janeiro, 1990, p. 213.
[5] Idem, p. 213.
[6] MILLER, Henry, Rimbaud por ele mesmo, Martin Claret, in Rimbaud – um estudo, A hora dos assassinos, São Paulo [s.d], p. 18.
[7] NICOLA, José de, Literatura Brasileira – das origens aos nossos dias, Editora Scipione, São Paulo, 1998, p. 218.
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