domingo, agosto 14, 2011

A beleza eterna que se mostra no efêmero

Escrito há mais de dois anos.

Nasci na zona rural. Isso é o suficiente para me deixar feliz. Acredito que hoje não há mais infâncias como a que tive no estado de Pernambuco. Cresci em meio a histórias e acontecimentos grandiosos. Estes foram responsáveis pela formação da camada existencial mais profunda da minha alma. Corri descalço, brinquei com a terra, nadei em riachos de águas cristalinas; deitei-me em gestos abandonados na gramínea seca a olhar para o céu. Ouvi o som da tempestade titânica nos canaviais impelidos pelo vento poderoso de uma tarde de inverno. Fui como o personagem de O Menino de Engenho, de José Lins do Rêgo. Subi em jaqueiras, mangueiras, ingazeiros, abacateiros e jenipapeiros; impressionei-me com novidades. Há expectativas fabulosas no meu mundo que não foram preenchidas e me levam uma vez ou outra a imaginar os meus dias de infância.Vez ou outra sou surpreendido por visões e acontecimentos daqueles dias.

Esperava com certa ânsia o período de floração das árvores frutíferas. O cheiro que recendia dos laranjais me fascinava. O cheiro das mangueiras floridas, dos ingazeiros, impingiam mistérios. Das mangueiras também. Vivia cercado por uma natureza enunciativa. Todavia, não devo deixar de mencionar que um dos fatos mais singulares era quando se dava a floração do pau d’arco. As matas distantes, que se mostravam ao longe com suas manchas amarelas, roxas e brancas, eram vizinhos amistosos que moravam na amplidão. Via-os longe. Manchas coloridas em meio à vegetação verde das matas. Os pau d’arcos sinalizavam poderes imateriais. A sua floração era acompanhada por toda uma transformação natural. Na época da floração, lagartos, pássaros e insetos tornam-se moradores de suas copas floridas – completamente floridas. Esta árvore é típica da Mata Atlântica. Ela pode ser encontrada na maioria dos estados litorâneos brasileiros.

Sem querer eu estava estabelecendo contato com o ipê, uma das árvores mais belas da vegetação nacional. O ipê é uma árvore simbolicamente poética. A sua floração silenciosa revela um ato superior. As suas flores surgem no inverno. Em Brasília, a floração se dá entre os meses de julho e agosto. Rubem Alves afirma que o surgimento das flores é um ato libidinoso: “As outras árvores fazem o que é normal - abrem-se para o amor na primavera, quando o clima é ameno e o verão está para chegar, com seu calor e chuvas. O ipê faz amor justo quando o inverno chega, e a sua copa florida é uma despudorada e triunfante exaltação do cio”. A vida apressada nos desarticula a percepção. Quando menos atentamos, lá está com toda superioridade a árvore completamente tomada pelas flores. As flores despojam-se rapidamente dos galhos. Passam o ano inteiro incógnitas como árvores normais, de repente se tornam em entes ornados por uma vestimenta nobre – flores amarelas, roxas, brancas, róseas.

Os ipês carregam consigo um enigma. Por que sua beleza é tão efêmera? Dispenso explicações científicas. Quero as poéticas, quero afirmações como a do poeta cearense Patativa do Assaré, que dizia: “Aquela árvore (...) qual rainha do campo, coroada”. As suas flores não duram mais que uma semana. É como se durante todo o ano ela reunisse as suas seivas e num único momento fizesse desabrochar a beleza oculta em sua matéria. É como se a eternidade passeasse pela terra em poucos instantes e nos fizesse enxergar os aspectos celestes embutidos na natureza. Olhar para um ipê florido antecipa a visão da glória etérea que habita na consciência religiosa da humanidade. A verdadeira religião lida necessariamente com o belo. O belo é o que é e isso define a existência. A realidade é bela. Nietzsche afirmava que a decadência do mundo grego iniciou-se no momento em que a realidade passou a ser analisada, investigada, em juízos de valor – bem e mal. O mal a representar as realidades ditas ruins, e, o bem, aqueles acontecimentos entendidos como positivos, a virtude. Daí para frente, passou-se a atribuir mais importância ao feio do que ao belo. O feio parece ter mais poderosos assombrosos sobre a mente dos homens. Os noticiários da televisão transmitem mais notícias ruins do que boas. Os jornalistas sabem que a matéria mais lida ou vista é aquela que fala de catástrofes e calamidades. Notícias boas não produzem tanto efeito.

É um espetáculo observar o ipê em pose majestática. O que dizer? Quais palavras poderiam classificar a sua beleza e postular: “ele é belo porque é assim e assim”? Não existe essa possibilidade. Os ipês são vocacionados para a beleza. Em meio à selva de pedra os indivíduos passam apressados e não se dão conta da sinfonia colorida que desabrochou em ornamentou a paisagem artificial. A única atitude que podemos de fato empreender é parar, observar, refletir e contemplar. Rubem Alves ainda diz que aqueles que param para contemplar a beleza dos ipês podem ser considerados como loucos: “Lembro-me disso todas as manhãs, pois na minha caminhada para o trabalho passo por um ipê rosa florido. A beleza é tão grande que fico ali parado, olhando sua copa contra o céu azul. E imagino que os outros, encerrados em suas pequenas bolhas metálicas rodantes, em busca de um destino, devem imaginar que não funciono bem”.

Para se apropriar da beleza eterna que se mostra no efêmero é necessário silêncio e solidão. É preciso desprender-se do concreto e do asfalto. Trata-se do mesmo ritual sugerido por Gilberto Gil na música “Se eu quiser falar com Deus”. Dizia Gil que era necessário tirar os sapatos, ficar sozinho, entrar no quarto, ficar em silêncio. Para ouvir o belo sugerido nos ipês é preciso esse mesmo ritual. Em nossos dias essa tarefa torna-se cada vez mais complexa. Todavia, os ipês ainda enchem-se para nos advertir que na frugalidade da sua floração, o eterno passeia pela terra nas cores alegres que brotam da beleza natural. Termino com as palavras de Rubem Alves: “Corra o risco de ser considerado louco: vá visitar os ipês. E diga-lhes que eles tornam o seu mundo mais belo. Eles nem o ouvirão e não responderão. Estão muito ocupados com o tempo de amar, que é tão curto. Quem sabe acontecerá com você o que aconteceu com Moisés, e sentirá que ali resplandece a glória divina...”.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: 27 e 29 de agosto de 2008, quarta e sexta-feira.

2 comentários:

Anônimo disse...

Carlinus,
Sou sua seguidora a um tempo e embora nunca tenha comentado, sempre passo por aqui e encontro dissertações fantásticas como essa. Parabéns !!

abraço

Carlinus disse...

Carla, obrigado pelas palavras de carinho. Achava que ninguém lia o que escrevo.

Abraços!