terça-feira, agosto 09, 2011

Reflexões natalícias II - quando se olha para trás e se aprende que viver é agora

O filósofo dinarmarquês Soren Kierkegaard disse certa vez que "vivemos a nossa vida para frente, mas a entendemos quando olhamos para trás". Por outro lado, temos aquela metáfora bíblica sobre a mulher de Ló. Diz a Bíblia que a cidade de Sodoma e Gomorra seria destruída por Deus por causa da maldade dos seus moradores. Deus pediu que Ló e sua família (que eram os únicos justos da cidade) saíssem do lugar, pois ela seria subtraída, deixaria de existir. Seria queimada com pedras inflamadas que cairiam do céu. Ló e sua família receberam a ordem para que não olhassem para trás. No dia em que aquilo que foi avisado que aconteceria começou a se dar, Ló e sua família iniciaram a fuga da cidade. A mulher de Ló cheia de curiosidade resolveu olhar para trás, talvez, para verificar o que estava acontecendo. Mas, de repente, ela se tornou numa estátua de sal. Quiça esta metáfora tenha por finalidade deixar claro que enquanto o homem caminha não lhe é lícito ou permitido olhar para trás. Quem olha para trás esquece as promessas do presente e as possibilidades de construção do futuro.

Os romanos eram mais criativos. Para lidar com imagem do tempo, eles criaram a pessoa de Janus, o porteiro celestial. Ele era retratado com duas cabeças, representando os términos e os começos, ou seja, passado e futuro. Inlusive, o nome janeiro, primeiro mês ou mês inaugural de cada ano, foi dado em homenagem a esse deus. Mas a frase de Kierkegarrd, filósofo de palavras sábias, introduz em mim uma possibilidade reflexiva. Vivemos para frente, pois o tempo é como uma locomotiva feroz que corre em sua fúria, sem parar, sem se compadecer dos passageiros que leva.

Quando olho para trás, o que vejo? Às vezes, faces de acontecimentos indistintos; em outros momentos, faces de acontecimentos distintos. Os indistintos são aqueles que passaram e que com o tempo vão se apagando. Mas há os distintos, aqueles que tatuaram as suas marcas em mim. Que não tive como escapar de suas influências em meu ser. Outro dia eu estava pensando enquanto caminhava como a cada dia que passa vamos nos tornando num espaço habitado pela saudade. Viver é um constante sentir saudade. Sentir saudade daquilo que foi; das pessoas que já passaram por nós; das experiências que tivemos; do beijo que damos; dos caminhos que cruzamos; daquele vento povoado por fragrâncias. Eu, por exemplo, todos as vezes que sinto cheiro da terra molhada pela chuva, naqueles primeiros instantes em que tudo começa, sou reportado à minha infância.

Eu sou um baú de estético de sensações. Dentro de mim moram as memórias daquilo que o meu corpo já viveu. Sou uma imensa esponja que vai guardando fatos, acontecimentos, eventos. Por isso, enquanto eu viver serei aquilo que aprendi a ser sendo. Heidegger disse certa vez que "o ser humano é aquele não-poder-ficar e também não-poder-sair do lugar". Ou seja, somos aquela indecisão. Aquela expectativa que gera insatisfação com o agora, mas ao mesmo tempo estamos sujeitos à facticidade do nosso tempo que acontece nesse exato momento. Sofre aquele que não consegue celebrar o presente. Certa vez li uma frase curiosa do Rubem Alves: "Cheguei onde estou por caminhos que não planejei". Esta afirmação é uma afirmação de respeito para com a vida. Primeiro, porque leva em conta o aspecto dialético da vida. A vida vai nos tornando aquilo que somos em cada momento do nosso existir. Não nascemos programados e isso é extraordinário. Não caminhamos pela mesma estrada duas vezes. Caminho uma vez, mas quando volto a caminhar a estrada terá mudado e, eu, também. Esse devir dá à vida uma mecânica poética. Segundo, pois é uma afirmação que mostra alguém maduro, que aprendeu a fazer as peguntas certas à vida.

Sofre muito pela vida a fora que faz os questionamentos errados, aprende a sibilar, a produzir garatujas verbais, a balbuciar em demasia, reclamar que nada é. E o Rubem arremata: "Plantei árvores, tive filhos, escrevi livros, tenho muitos amigos e, sobretudo, gosto de brincar. Que mais posso desejar? Se eu pudesse viver novamente a minha vida, eu a viveria como a vivi porque estou feliz onde estou". O lamento é sempre uma força que enfraquece, que debilita, que nos torna murmuradores ressentidos, que não consegue enxergar nada de bom naquilo que já viveu. Nietzsche costumava dizer que feliz é o sujeito que possui memória fraca, pois ele pode viver as mesmas eexperiências como se estas fossem a primeira vez.

Portanto, é preciso aprender a olhar para trás. Não ter medo de olhar para trás como faziam os judeus. Mas saber olhar para trás e enxergar uma vasta planície pedagógica, uma campo de possibilidades que explicam o meu presente e que me conduz a um caminho certo, plano.

Ao completar mais uma ano de vida, sou grato por tudo aquilo que vivi. Pelas pessoas maravilhosas que conheço. Pelas dificuldades que sempre me forçam a aprender a ser mais, querer sempre partir, no dizer de Heidegger. Sou grato pela esposa que tenho. Não fiz planejamentos para muito daquilo que sou e tenho. Agradeço pela minha infância. Pelos dias em que celebrei o barulho e o perfume da chuva; quando pisei descalço no chão pernambucano. Sinto mudanças em meu corpo físico. Está tudo escrito no pergaminho do meu rosto - eu sou a soma de tudo aquilo que vivi - sorrisos de pessoas, abraços, livros que li, músicas que ouvi, conversas que guardei, despedidas, lágrimas que derramei, escolhas que a vida me permitiu fazer. Preciso ser como Janus - olhar para o passado porque ele me forjou, viver o presente como uma dádiva e apostar no futuro, pois é para lá que a vida nos leva.

Que venha a próxima primavera!

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