terça-feira, junho 29, 2010

Paranóia, medo e fragilidade

O filme Crash – no limite, conforme foi traduzido no Brasil, é um trabalho produzido no ano de 2005, pelo diretor de origem canadense Paul Haggis. Ganhou o Oscar de melhor filme, edição e roteiro original do ano de 2006 e mais 6 prêmios internacionais, incluindo o Globo de Ouro (EUA) e o Bafta (Inglaterra). Até aí tudo bem! Afinal de contas até mesmo o filme Titanic (1997) ganhou 11 estatuetas do Oscar. Refiro-me aparentemente com negatividade ao filme de James Cameron, pois o longa é demasiado dramático, cheio de vôos sentimentais. A música da Celine Dion é sofrível (My Heart Will Go On).

Já a película de 2005, é em dimensão, muito mais inteligente do que Titanic. Crash é um filme para pensar, meditar, refletir; já por vez, no filme Titanic, a estratégia é fazer sentir, por isso o enorme sucesso de bilheteria. Fazer sentir é a melhor arma a favor do marketing. Quem quer vender, ser bem sucedido, deve acariciar as emoções do público. O produto pode não ser bom, mas se fala às emoções, as portas da conquista são abertas com maior facilidade.

Os personagens do filme de Paul Haggis são pessoas independentes. Há como que uma formação de astros separados orbitando em torno do mesmo eixo gravitacional. Diria que se trata de um fluxo não-linear de narrativa muito bem montada. Os personagens inicialmente parecem não ter nenhuma ligação uns com os outros. Mas de forma (casual?) cruzam-se num espaço de 36 horas e isso acaba modificando a existência de cada um deles. “U
ma histérica dona de casa (Sandra Bullock) e seu marido promotor público (Brandan Fraser); de um casal de detetives (Don Cheadle e Jennifer Esposito); de um diretor de televisão (Terrance Howard) e sua esposa (Thandie Newton); de um chaveiro mexicano (Michael Pena); de um comerciante persa (Shaun Toub); de dois ladrões negros (Larenz Tate e Chris Bridges); e de um policial novato (Ryan Phillippe) e outro racista (Matt Dillon)”. O filme se passa na cidade de Los Angeles, com direito a foto do prefeito da Califórnia Arnold Schwarzenegger e tudo mais. E mostra o drama do cotidiano numa grande cidade de forma realista. O caos fragmentário dos relacionamentos é explorado e exatifica a vida nos grandes centros.

O termo crash em inglês significa “barulho”, “estrondo”; “impacto”, “colisão”, “queda estrepitosa”; “despedaçar-se”. O filme não pode ser assistido uma única vez. Deve ser visto muitas vezes para que se possa captar as nuances, os detalhes ocultos. Logo no início há uma espécie de monólogo, um insignt, uma reflexão melancólica do detetive Graham:
'Em Los Angeles, ninguém toca um ao outro. Há sempre vidraças que separam as pessoas. Deve ser por isso que elas sempre se esbarram nas ruas. É o sentido do toque''. Ou seja, é nesse aspecto que o filme caminha. Busca retratar o turco, o policial racista, o migrante mexicano, o promotor, a dona de casa, o chinês, os ladrões, o trabalhador honesto e pai de família, o policial novo e cheio de humanismo como figuras de um mosaico complexo. Um quebra-cabeças no qual as peças não desejam se juntar (mas formam o tecido social), pois estão crivados pela intolerância, pela falta de amabilidade. Todos têm medo um do outro. O outro em sua literalidade é o inferno, como dizia Sartre.

O preconceito e a esperteza, a paranóia, o medo, a arrogância, o desrespeito são capas que escondem os aspectos profundos da fragilidade que habita as grandes cidades. Os homens não se tocam. Vêem o outro como potenciais inimigos. A solidariedade se ausentou e a solidão acampou nos corações. É como mostra a personagem de Sandra Bullock que ao caminhar na rua com o seu marido (Brandan Fraser), ao enxergar dois negros, arma no coração um desejo de segurança. Os negros, por sua vez, conscientemente sabem que há um comportamento defensivo da parte dela. Nessa cena percebe-se uma espécie de inamistosidade recíproca. Ela, branca, classe média alta; eles, negros, dos bairros pobres, dos guetos, parecem ter em suas identidades sociais um determinismo que os configura pela cor que possuem. Isso não é fruto apenas da paranóia dos americanos. É resultado de uma programação mental que habita as mentalidades, que julga e sentencia o outro pela cor, nível social, roupa que veste ou carro que possui.


O filme quer deixar a pergunta para que todos reflitam: até que ponto você se conhece? Até que ponto nos conhecemos? Esta pergunta é séria, pois ninguém está de certa forma imune aos incidentes que são derivados do medo; o medo que remete à paranóia; a paranóia que fragiliza as expectativas que temos sobre o outro. O gesto imprevidente que nos prepara para o contragolpe, invade-nos a cada vez que saímos à rua. Isso fica evidente na carona que o policial novato oferece a um dos dois negros. De certa forma, o policial julga-se indignado com o comportamento racista do policial (Matt Dillon) mais antigo que age movido pelo preconceito e pelo poder que o Estado confere a ele. É a arbitrariedade do homem que representa os interesses coletivos, a segurança pública. Abusa, molesta a esposa do negro parado sem necessidade, numa abordagem estúpida. O policial novo enche sua alma de certeza em favor da benevolência, quando aplaca uma revista, um incidente que possivelmente levaria a uma peça mal sucedida entre o diretor de televisão, antes abordado com injustiça e leviandade.

Ter conseguido aplacar a hostilidade entre outros dois policiais e o negro parece lhe encher de convicções humanitárias. Sua alma é aparentemente habitada por sentimentos nobres. Mas até que ponto o ser humano se conhece? Oferece carona e quando menos percebe mata um negro num gesto quase que autômato. Nisso fica patente dois fatos: (1) que todos os indivíduos vivendo em sociedade estão prontos para a disputa, para o triunfo contra o outro; que o outro não pode prevalecer contra mim. Afinal, numa guerra vence aquele que for mais ágil, mais rápido, mais esperto, mais perspicaz. (2) Mesmo imbuídos de convicções arraigadas ninguém é suficientemente bom. Num momento ou outro ficam claras as animosidades escondidas nos locais mais tenebrosos da alma. Essa abordagem quase que psicanalítica remete a um tipo de entendimento de que os homens por viverem diariamente num espaço habitado por medos e reveses alimentam em seus inconscientes gestos mecânicos de morte, de racismo, de incivilidade. Por mais que o indivíduo se sinta nobre, essa consciência é dispersada num momento inesperado, casos extremos se mostram em sua agudeza.


O preconceito, o individualismo, a hipocrisia e o auto-engano são realidades presentes em qualquer cidade grande. Nesse quesito, podemos afirmar que o filme apesar de retratar o drama de uma cidade americana e abordar apenas o microcosmo da vida daqueles personagens contigentes, em sua essência é universalista. Os homens são cada mais vulneráveis em todos os locais do mundo. O niilismo criado pela própria civilização adoeceu os homens. No fundo, como é mostrado nas cenas finais, todos possuem necessidades – querem ser amados, respeitados, acolhidos. A vida nos grandes centros prepara para a guerra, mas priva do preenchimento das necessidades existenciais. Restam apenas paranóia, medo, intolerância e o quebranto frágil.


Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

Data: sexta-feira, 1 de agosto de 2008, 11:56:14.

Nenhum comentário: