terça-feira, julho 19, 2011

Ágora – mais um belo filme espanhol

Os espanhóis voltaram a fazer um bom filme - Ágora – do diretor Alejandro Amenábar, tendo como protagonista a bela Rachel Weisz que faz o papel de Hypatias, filósofa neoplatônica do primeiro século depois de Cristo. A ágora para os gregos era o local onde a vida pública propriamente dita acontecia. Nesse sentido, o filme possui uma fotografia incrível. As descrições históricas impressionam. Retrata com fidelidade os fatos atinentes à vida e ao contexto político e social da época em que viveu a bela pensadora.

Os séculos IV e V d.C. foram extraordinariamente conturbados. Uma crença tomava de conta de todos os setores da vida social. O radicalismo da fé chegava a paroxismos nunca vistos. Os cristãos que haviam sido perseguidos, transformados em mártires, reverteram o quadro histórico e conseguiram fazer com que o Estado Romano tolerasse a sua fé. O imperador Teodósio (347-395 d.C) havia se convertido ao cristianismo. A fé que não a cristã não era aceita por aqueles que se diziam discípulos de Jesus Cristo. O culto aos deuses greco-romanos passou ser intolerado. Houve assim a institucionalização do radicalismo.

É nesse contexto tumultuado que vive Hypatias, filha do filósofo Theon, em Alexandria. É professora arguta. Segundo os historiadores, sucedeu o eminente filósofo Plotino, conhecido pelo seu neoplatonismo. É uma jovem sábia, de inteligência inquieta. Quando inquirida certa vez por qual motivo ainda não havia casado, respondeu peremptoriamente: “Estou casada com a verdade da filosofia”. Alexandria ficou mais conhecida na Antiguidade pela bela biblioteca que a cidade abrigava. Para outros, tal biblioteca nunca existiu. Seus aspectos faraônicos, dessa forma, não passam de uma lenda. Mas o fato é que existia em Alexandria uma tradição pelos livros – papiros. Inúmeros papiros são a companhia benquista da jovem pensadora.

Mas aos poucos, os cristãos entram em conflito com os não-cristãos. Os cristãos vão se estabelecendo. Arrostando. Subjugando pela força da espada. A figura de Cirilo de Alexandria, discípulo do bispo Teófilo, é fundamental. Cirilo exala intransigência. Ele é conhecido por fazer triunfar o cabedal temporal da Igreja sobre o espiritual. Se a Igreja Católica é essa potestade histórica, certamente Cirilo contribuiu para isso. Segundo Cirilo, fora da Igreja, a Grande Mãe, não havia salvação. Tal entendimento prevaleceu na história, fazendo da Santa Sé, em dados momentos, um “monstro manco”, capaz de estabelecer, pela sua posição, relações espúrias com o mundo e aquinhoar os homens com castigos e medos infundados. Mais tarde Cirilo foi transformado em doutor da Igreja.

A intemperança e o domínio da força fez com que os cristãos subjugassem Alexandria. Orestes, o prefeito da cidade, amigo da filósofa, acaba sendo vergado à vontade de Cirilo. Trata-se de um belo símbolo – ou seja, da Igreja dobrando o Estado, submetendo o mundo á sua vontade caprichosa. Hypatias fica sozinha. É acusada de ateísmo. Chamam-na de bruxa. Prostituta. Acusam-na com os motivos mais vis. A filósofa mostra-se até fim com total integridade. Não há dolo em suas ações. Age com virtude e com a intuição da verdade. Ama o saber – e ama-o até o fim. Conforme o filme, após ter dispensado a escolta de soldados romanos é apanhada por cristãos enquanto caminhava pela rua, como uma pessoa comum. Segundo a História, foi conduzida para o interior de um templo cristão e lá foi morta a pedradas. Seu corpo, logo em seguida, foi estilhaçado com cacos de conchas do mar. Fizeram-na em pedaços. Hypatias foi morta pela intolerância.

O filme Ágora deixa-nos a lição de que a irracionalidade pode subjulgar o bom senso. E, uma vez que isso ocorra, as conseqüências são danosas. Hypatias percebia incoerências no sistema ptolomaico. Ela percebeu que o sol era o centro do universo, sendo assim uma das primeiras cientistas da história a observar esse fato. Somente depois de 1200 anos é que se Nicolau Copérnico voltaria a estudar esse evento.

O sistema ptolomaico servia aos interesses da Igreja. Colocava a terra e os homens numa posição de dignidade. Permitia que ilações acerca das intenções de Deus fossem estabelecidas. Foi por causa do sistema ptolomaico que o Mundo Ocidental deixou a luminosidade da Antiguidade Clássica, com possibilidades e intenções científicas, e mergulhou numa noite de mil anos. É preciso assinalar que a Idade Média teve sua beleza, mas foi um tempo no qual a escuridão foi forjada, a ignorância alimentada e teve como resultado o atrofiamento da razão.

Ágora
retrata esse fato com tomadas áreas. Aos poucos a imagem se distancia do ponto geográfico – Alexandria – até que tenhamos o Planeta Terra. Sua dimensão. Grandiosidade. E o silêncio do Universo. Os homens são movidos, direcionados, por impulsos de credulidade, mas há apenas o silêncio dos espaços infinitos. A imagem se coaduna com a agonia existencial de Pascal: “Esses espaços infinitos me apavoram”. A grandiosidade do homem na terra é apenas aparente. A dignidade do sistema ptolomaico conferia apenas uma casca de orgulho premeditado. A terra era/é apenas mais um astro sem luz própria, girando em torno de uma estrela de quinta grandeza, numa costela afastada de uma galáxia. Só existem verdades para os homens. Recordo-me de alguns belos versos de Alberto Caieiro:

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?


"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.


O papel da religião deve
ser outro. Não abafar a voz da ciência. Deve, por sua vez, debater e apregoar virtudes. E não oferecer óbices à razão. Afinal, se Deus é o criador dos cosmos e deu inteligência ao homem, a criatura capaz de ter consciência de que está consciente, este deve utilizar a consciência de si para se situar no mundo. Quando a religião obstacula essa possibilidade, surgem os radicalismos, as fogueiras da inquisição, as trevas e o conseqüente assalto à capacidade humana.

O filme deixa transparecer, de maneira metafórica, que a morte de Hypatias, a filósofa independente, não vendida aos caprichos da Igreja, é o própria sepultamento da razão cientifica e da liberdade do pensar filosófico. Ou seja, a religião matou a razão e a consequência foi mil anos de uma escuridão úmida e pegajosa. A luz do inquirimento viria a brilhar novamente com o Renascimento.

Data: 13 e 16/11/2010, sábado e terça-feira

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