Voltei ao texto de Varlam Chalámov. Como afirmei há algum tempo atrás, pretendo ler os seis livros que serão lançados pela Editora 34. Até agora saíram três. Vou para o segundo. Não há como ler Chalámov e não sair com uma experiência amarga e realista sobre os limites da natureza humana. Em Chalámov passamos a entender que escrever é um forma de resistência, de manter-se vivo, de suportar a facticidade da história, mesmo quando ela nos marca e deixa em nós o seu gosto amargo.
O russo foi levado ao inferno duas vezes, ou seja, foi preso duas vezes e enviado para Kolimá - região afastada da Sibéria - acusado de atividade contrarrevolucionária. Esteve no mundo subterrâneo, na casa dos mortos, dos degredados. São memórias que revelam como o homem pode se tornar o lobo do próprio homem. Poucas coisas na história da humanidade podem ser comparadas às experiências vivenciadas nos campos gelados de Kolimá. Vê-lo narrar com frieza e ataraxia, mostra-nos o quanto ele resistiu e manteve-se sóbrio.
O escritor foi uma daquelas existências afeitas às grandes tragédias, aos grandes infortúnios que seguem determinadas figuras. Ao regressar após vinte anos em degredo, é enxotado pela esposa que manda que ele pegue os badulaques pessoais e siga para o outro lugar. Sou capaz de enxergá-lo escrevendo, sozinho, os seis tomos de Os Contos de Kolimá. Sua memória privilegiada foi capaz de esponjar os fatos, as dores lancinantes provocadas pelo infortúnio de uma existência condenada ao trabalho forçado, à má alimentação, ao frio, aos insetos, à sujeira, ao escorbuto, à infâmia, ao olhar torto e desconfiado dos lacaios do regime soviético.
O conto de abertura - O procurador da Judeia - é uma aula de serenidade, de quem aprendeu a conviver com o sofrimento; de quem já se acostumou com todo o espectro de desgraças; de quem já viu aquilo que seres médios não imaginam. A narrativa conta de um navio que transporta três mil prisioneiros que são tratados como monturo. Milhares já haviam morrido e são jogados em valas-comuns, sem que se preocupe com suas histórias pessoais. Chalámov escreve assim:
"... Em cinco de dezembro de 1947, o vapor KIM entrou na baía de Nagáievo com uma carga humana - três mil presos. Durante a viagem os presos fizeram um motim, e as autoridades, para enfrentá-los, decidiram inundar de água todos os porões. E tudo a um frio de quarenta graus negativos. O que é uma queimadura de gelo de terceiro, quarto grau..."
São por meio desses enxertos de acontecimentos com feições de surrealidade, que encontramos o resultado do trabalho narrativo de Chalámov. A leitura do seu texto nos cura. E isso é paradoxal. Coloca-nos diante de uma maturidade, de uma serenidade que nos instrumentaliza para resistir aos grandes reveses. Em Chalámov, aprendemos que "o medo", como ele mesmo falou, "é um sentimento vergonhoso e depravador, que humilha o homem". Assim, existe uma beleza silenciosa, graciosa, mesmo em meio à tragédia e ao horror. Chalámov consegue destilar equilíbrio mesmo em meio à loucura; consegue a sobriedade quando os homens desvairavam. Seu texto é um sopro de vida em meio ao asfixiamento físico e moral de uma época e serve como reflexão, como um daqueles ensaios de Montaigne. Em Chalámov, ainda, vemos quando a vida perde completamente o seu valor e se passa a conviver com a banalidade do mal.
3 comentários:
Todos os livros da Editora 34 são um primor. Tanto no que tange as traduções das obras, quanto ao acabamento estético dos livros.
Verdade!
Hoje, a Editora 34 presta um serviço essencial aos amantes da literatura - principalmente com as traduções dos escritores russos!
Com certeza.
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