quarta-feira, dezembro 19, 2018

Algumas anotações sobre "Usina", de José Lins do Rego

Usina foi o quinto livro escrito por José Lins do Rego. Anterior a este, o escritor paraibano escrevera - Menino de Engenho, Doidinho, Bangue e o Moleque Ricardo. Após a escrita dos cinco livros, uma espécie de "pentateuco do autor", José Lins os denominou de "ciclo da cana de açúcar". Há nesses livros fortes elementos memorialísticos, assinalações do que é a prosa do grande escritor. Os cinco livros possuem características próprias, mas podem ser sistematizados.

Os três primeiros possuem um eixo comum, ou seja, procuram contar a história de Carlos de Melo: (1) sua chegada ao Engenho Santa Rosa; a descoberta do mundo imenso que constituía a propriedade; o desabrochar da infância em um espaço edênico; o desabrochar precoce da sexualidade; o banho no rio Paraíba. Tudo ali transparece de forma nostálgica. As memórias são edulcoradas por um lamento implícito da felicidade que se perdeu. (2) a ida para o orfanato em Itabaiana; as dificuldades advindas da vida coletiva; a austeridade do professor. Em Doidinho, escutamos ecos de O Ateneu, de Raul Pompeia. (3) Nota-se um Carlos de Melo adulto e inábil para a administração do Engenho Santa Rosa. Sua falta de tino para conduzir a propriedade, faz com que o patrimônio seja quase solapado. 

No quarto volume - "O moleque Ricardo" - nota-se a saída do mundo agrário para a atmosfera suburbana. Há um forte engajamento por parte de José Lins. O moleque Ricardo possui um aspecto panfletário importante, pois a denúncia social se situa nas condições do operariado em Recife. Nesta cidade, assiste-se à luta cotidiana de homens e mulheres comuns pela sobrevivência. As condições adversas. A moradia ultrajante. O emprego escasso. A problematização a respeito da criminalidade. A força opressora do Estado, que consolida a sua existência para proteger a propriedade dos meios de produção dos ricos. Ricardo é exilado para Fernando de Noronha, simplesmente, por ter participado de uma manifestação. 

Em Usina, encontra-se uma conjuntura diferente. O livro é dividido em duas partes: (1) A primeira parte coloca no plano central a história de Ricardo em Fernando de Noronha. Na ilha, percebe-se a sua saudade de casa. O envolvimento homoafetivo. A solidão em um mundo assolado por fortes ventos e pela lembrança. (2) Na segunda parte (e mais extensa), o narrador onisciente foca a atenção sobre a Usina Bom Jesus, que um dia fora o Engenho Santa Rosa. Ricardo volta para os seus. Emprega-se em uma venda esconde-se atrás de um balcão, até ser assassinado. Ele retira-se da narrativa como coadjuvante. 

Na segunda parte, o Dr. Juca, filho de José Paulino, tio de Carlos de Melo, é quem toma a dianteira. Nota-se, a partir de três personagens, pelos menos três elementos definidores das mudanças econômicas e sociais que se dão com a derrocada dos banguês, o surgimento das usinas e a falência das oligarquias do açúcar.

(1) Dr. Juca - como afirmado, Juca é filho de José Paulino. Por meio de uma associação com os parentes, tornou-se chefe do clã e condutor dos negócios da Bom Jesus. Os familiares confiam a ele a presidência da Usina. Os negócios galopam em atmosfera de lucros e otimismo. Há comentários elogiosos às suas habilidades administrativas.  Juca não mede os gastos. Financia a vida das amantes. É um dissipador nos bordéis famosos e requintados do Recife. Em uma época em que os automóveis eram um luxo, o impulsivo usineiro compra um carro por uma soma vultosa. A saca de açúcar é vendido por 60 contos, uma preço que gera uma confiança exagerada nos empreendimentos futuros. Juca decide modernizar a usina. Entra em associação com os "americanos". Busca um financiamento que, somente poderia ser realizado, caso houvesse garantias exatas. Os parentes devem colocar suas propriedades no investimento. Uma vez que a Bom Jesus não corresponda, as propriedades seriam confiscadas. Juca é a imprevidência. Não atua por cálculos exatos, medidos. Para existir em um meio competitivo é necessário atentar para os movimentos da história e realizar planejamentos corretos, acertados.

(2) Dr. Luís - é o dono da São Félix. Ele é o antípoda do Dr. Juca. Luís é a frugalidade. É a prudência. O passo medido. O cálculo. É a intuição que sabe o momento certo de agir. Sua usina é grande. É um leão à espreita da presa. A Bom Jesus não conseguiu resistir diante dos seus assédios. Luís é um homem de família. Não é um dissipador. Os seus filhos brincam à sombra das árvores. Sua esposa está ao seu lado. Luís representa a virtude do capital. É um sujeito de fé (constrói igrejas), mas sabe ser duro com o povo quando necessário. Luís não gasta tempo com elementos que não sejam propiciadores de vantagens. Ele fica à distância assistindo aos estertores da Bom Jesus. Contempla-lhe a agonia. A luta diária. A resistência mole, improfícua. Luís representa a face monopolista do capital. A morte dos engenhos e o surgimento das usinas, fez surgir uma lógica: os mais fortes devoram os mais fracos. A São Félix era o empreendimento cheio de energia e Dr. Luís era o seu timoneiro. A Bom Jesus não resistiu e sucumbiu.

(3) Dona Domdom - é a esposa de Juca. Domdom é altruísta, generosa. É abnegada. Sua preocupação é fazer o bem. Há virtudes imensas em seu coração. Ela está sempre disposta a ajudar aqueles que precisem de auxílio. Sua grande preocupação é o bem-estar das filhas. Ela representa o lado humano e social do mundo capitalista. Vem à sua memória em muitas passagens da obra, a vida humilde que tivera antes de morar em um palacete na capital paraibana, antes de experimentar os requintes de uma vida aristocrática propiciada pelos lucros da usina. É ela quem busca ajudar os moradores humildes da Bom Jesus. Fornece remédio. Intervém junto ao marido em favor das pessoas humildes. À medida que a ganância ganha proporções e o império da cana vai tomando todos os locais do antigo engenho, os moradores ficam sem ter onde plantar; sem ter as águas do rio para pescar.  Domdom observa esse fato com reprovação. 

Em Usina, Zé Lins monta um painel da derrocada de uma estrutura produtiva e as mudanças advindas dessa metamorfose. A estrutura semi-feudal mudou com a chegada das usinas. Juca, por exemplo, buscava substituir 30 funcionários por apenas um que apertasse um botão. Ou seja, há uma reflexão do escritor sobre a mecanização do campo. Os trabalhadores não qualificados, que outrora vendiam a sua força braçal de trabalho, passam a não ter mais ocupação. Com o fim da República Velha, e o esmagamento da economia agrária que havia no país, é necessário pensar em industrializar o país. Há um fluxo de trabalhadores emigrando do campo para a cidade. É o que se dá, por exemplo, com Ricardo. Sem morada, sem trabalho, sem perspectivas de melhores dias, levas de nordestinos saem do campo e buscam os centros urbanos.

Como já apontado em uma reflexão já feita aqui, o transbordamento do rio Paraíba, expulsando o senhor de engenho (Dr. Juca) e sua esposa (Dona Domdom), funciona como um mito de fundação ou de renascimento. É conhecida a história bíblica do dilúvio. Segundo a Bíblia, esse se deu para que "um momento novo" se fizesse sobre a terra. A maldade humana havia alcançado níveis alarmantes. O dilúvio era a possibilidade de renovação da terra com todos os seus animais. Os dilúvios funcionam como um rito de passagem. Em "O Guarani", José de Alencar também se utiliza desse artifício para demonstrar a fundação do Brasil. José Lins do Rego, pelo contrário, deseja mostrar como se dá a passagem para um novo tempo na vida dos engenhos. O espaço paradisíaco dos engenhos foi substituído pela dureza, pela insensibilidade da máquina. Toda a generosidade existente; o humanismo foi substituído pela inquebrantável ganância dos novos proprietários que mudaram o modelo de produção, de um incipiente agrarismo por meio dos banguês, para o produtivo movimento da mecanização por meio das usinas. O senhor de engenho era dono da propriedade e de tudo que nela havia. Com as usinas, instalou-se a indiferença, a frieza e "coisificação" do homem, da paisagem e da terra.


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