segunda-feira, abril 24, 2023

A história, a mitologia judaico-cristã e as mulheres

 

Ao longo da história, observa-se um movimento que sempre procurou tornar as mulheres seres sem vontade. Em quase quatro milênios de história registrada, é proeminente a hegemonia do protagonismo do discurso masculino. A historiadora Gerda Lerner afirma que mais de 90% dos registros históricos desse período foram feitos por homens.

Observa-se o quanto as mulheres foram definidas a partir de uma valoração sobre o corpo. Elas sempre foram alvos de uma catalogação. Houve, por exemplo, a determinação de que as mulheres são seres maternais, frágeis, concebidas para as tarefas subalternas, domésticas. O espaço da rua, das ações, das decisões foi feito para os homens; já o espaço das mulheres é o “espaço do recôndito” – da cozinha, do quarto. Mesmo quando o homem está em casa, a casa passa a ser segmentada – a sala por ser o lugar dos encontros e da sociabilidade é do homem; à mulher, cabe a cozinha.

A catalogação fornece um lugar à mulher – os homens são seres da cultura; a mulher, um ser da natureza. No entendimento masculino, as mulheres existem para preencherem certas atividades. Passaram a ser acessórias ao homem.

O mito bíblico-judaico afirma que Javé (que personaliza o masculino), criou para Adão “uma auxiliadora idônea”. É necessário destacar que "idôneo" é aquele ou aquela que auxilia, que presta uma ajuda, uma assistência. Aparece como alguém que está ao lado; que não possui protagonismo, que está à sombra de algo. Esse ser só é quando está ligado ao elemento definidor de sua existência, pois surge como apêndice. A palavra “idoneus” significa “bom”, “útil” ou que “demonstra perfeito estado”. A Bíblia na Linguagem de hoje é mais reveladora no sentido de tornar mais explícita a despersonalização da mulher. Nota-se o que Javé afirma: “Não é bom que o homem viva sozinho. Vou fazer para ele alguém que ajude como se fosse a sua cara metade”. Ressalta-se, mais uma vez, que a mulher só é algo enquanto estiver ligada ao homem. Ela nunca está só; é sempre a partir de algo. A ideia de “cara metade” possui ecos da filosofia grega; todavia, o entendimento aproxima-se disso, pois a mulher nunca é inteira, completa. Ao longo de mais de quatro mil anos de história, houve sempre o discurso da incompletude; ou que sua missão é estar ao lado do homem para ser um com ele. Ou seja, ela nunca é algo estando sozinha.

A Bíblia de Jerusalém afirma que após Javé ter criado o homem, o próprio homem afirmou: “Ela será chamada mulher, porque foi tirada do homem”. O homem passa a ser uma espécie de tutor da mulher, dando-lhe um nome, definindo-lhe a forma, a natureza.

Ainda no livro de Gênesis, encontra-se estupefaciente passagem sobre a condição: "Teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te dominará" (Gn 3.16). Fica subjacente no texto a nação de que mulher é uma entidade com instintos irrefreáveis e em constante ebulição. Somente contida pela força atávica do homem. 

A mulher, assim, ao longo da história, possui um desejo tutelado. Enquanto os homens são aqueles que registram a história, são os seres que produzem a cultura, as mulheres são os seres auxiliares, que existem para satisfazer os homens. A história foi feita por homens, por isso as mulheres nunca tiveram um lugar de protagonismo. A Bíblia corrobora aquilo que Gerda Lerner afirma, pois foi feita à imagem e semelhança do macho. Quando não é Javé que fala, é o homem que assume o seu lugar para definir os papéis das mulheres no mundo. Observa-se ainda que não há uma única autora em qualquer narrativa bíblica. Os registros dos mitos bíblicos foram feitos por homens. E daí surge uma perturbadora pergunta: Caso as mulheres tivessem escrito a Bíblia, quais seriam as noções sobre o sagrado? Javé seria um ente melindroso, violento e contraditória como aparece em todo Antigo Testamento?

Nenhum comentário: