terça-feira, maio 23, 2023

Annie Ernaux e aquele acontecimento

 

“Enxerguei um bonequinho pendurado ao meu sexo por um cordão avermelhado. Não tinha me passado pela cabeça ter aquilo dentro de mim... Eu era bicho”.

In “O acontecimento”, Ennie Ernaux.

 

Até 2021, a escritora francesa Ennie Ernaux não era tão conhecida no Brasil. Havia tradução para dois ou três dos seus livros. Atualmente, seus livros são vendidos rapidamente nas livrarias. Novos livros estão sendo vertidos do francês para o português. Se não me falha a memória, há, atualmente, seis livros traduzidos. Ernaux é bastante conhecida na França. Escreveu mais de duas dezenas de livros ao longo de sua prolífica carreira.

Durante boa parte de sua vida, foi professora. Formada em letras, Ernaux é uma artífice versada na arte de dizer. Li dois dos seus livros. Mas, já tive a oportunidade de captar as características que a tornaram famosa. Seu texto é simples; despojado de requintes épicos; de empolações. Trata-se de textos curtos, de uma escrita breve, lacônica, mas que muito diz. Sua habilidade para suscitar inquietação é uma das qualidades que aparecem de imediato quando a lemos. Os textos transmitem a impressão de que foram escritos para serem lidos de um único fôlego.

Ernaux costuma nos capturar já no primeiro capítulo. A principal ferramenta que utiliza para destrancar a dimensão que guarda as palavras é a memória. Nesse sentido, pode-se afirmar que a francesa aponta para um tipo de habilidade que conseguiu desenvolver: tudo está nela. O passado é o espaço a ser estudado, arqueologizado, desvelado. Em um primeiro momento, tem-se a noção de que estamos diante de uma simples autora de autobiografias. Entretanto, sua  escrita transcende esse gênero. Ao mesmo tempo que fala de si, Ernaux dialoga com a sociologia; pincela de forma densa a construção de episódicos retratos; joga luz no quarto escuro da memória e acaba por construir uma literatura intimista. Ela mesma é o objeto da análise. A francesa eterniza o evento que é memória por meio de uma escrita que traz à vida o real que já não é, mas que já foi e que volta a ser por intermédio de uma seleção cuidadosa de um certo modo de dizer a si mesma.  

Ennie Arnaux

Ao narrar a sua vida, Ernaux realiza o movimento interior/exterior. Nesse sentido, seus textos são altamente existenciais.  Todavia, esse exercício não perece nesse ponto. Isso qualquer pessoa pode fazer – eu, por exemplo. E, nesse ponto, nota-se a grandiosidade de sua literatura. Talvez, aqui aconteça o fluxo de curiosidade que acomete os seus leitores, pois ela realiza um segundo movimento que é o do particular para o universal. É o que se dá, por exemplo, em seu livro “O Acontecimento”, que narra o aborto que ela realizou quando tinha apenas 23 anos de idade, ainda nos anos de 1960, numa França que possuía uma legislação que poderia condenar à morte tanto que realizava ou quem ajudasse a realizar um aborto. Isso pode ser verificado no filme “Um assunto de mulheres”, de 1988.

Ernaux, dessa forma, eleva o debate. Coloca-nos diante de assunto que é sensível, relevante e que deve ser do interesse de toda sociedade que seja solidária à luta das mulheres por mais liberdade para decidir o que fazer com o próprio corpo. Sendo assim, sua literatura está cheia do corpo, das escolhas, das contradições, da educação, da trajetória social, da relação com o outro, pois ela utiliza sua própria percepção para dizer-se ao mundo. Sua literatura permite que nos analisemos por meio de um outro, que é o outro da própria escritora. Essa característica torna Ernaux uma escritora singular, apesar do gênero memória ser povoado por uma quantidade enorme de escritores.

O posicionamento feminista é mais do que evidente na obra. Fica explícita a luta pessoal e a autodeterminação para levar à frente o desejo de realizar o aborto. Ela, uma jovem de 23 anos de idade, decidida a não continuar a gestação, buscou meios para pôr fim àquela condição momentânea; mas que poderia trazer transtornos para o resto de sua vida. Enfrentou o preconceito, a indiferença e a postura violenta de médicos, de colegas; o medo, a insegurança e, quiçá, o senso de culpa; e esteve, o tempo todo, sozinha com a incógnita – o que vai acontecer comigo e com o meu corpo?

“O Acontecimento” é um livro necessário. Foi escrito mais de trinta anos após o evento de 1963. Ela mesma diz na parte final da obra:

“Terminei de pôr em palavra isso que se revela para mim como uma experiência humana total, da vida e da morte, do tempo e da moral e do interdito, da lei, uma experiência vivida de um extremo a outro pelo corpo”.

“Eliminei a única culpa que senti a respeito desse acontecimento - que ele tenha acontecido comigo e que eu não tenha feito nada dele. Como um dom recebido e desperdiçado. Pois, para além de todas as razões sociais e psicológicas que pude encontrar naquilo que vivi, existe uma da qual estou mais certa do que tudo: as coisas aconteceram comigo para que as conte. E o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros”. 

               

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