quarta-feira, maio 31, 2023

"Vila dos Confins" e os imensos confins do Brasil

 

“O sol caía de ponta, brutal. Entorpecia e queimava tudo. A areia era polvilho de espelho socado no pilão”.

                Mário Palmério

 

Terminei a leitura do terceiro de doze livros de literatura brasileira que pretendo realizar ao longo de 2023. Desta vez, li “Vila dos Confins”, do escritor mineiro Mário Palmério. Importante e reveladora leitura. Palmério foi uma figura bastante curiosa da nossa literatura. Além de autor de – pelo menos - duas importantes obras – “Vila dos Confins” e “Chapadão do Bugre” -, teve uma entusiástica carreira como político e educador. Palmério ainda foi embaixador do Brasil em Assunção, capital do Paraguai, durante o governo de João Goulart. Vale destacar sua intensa atuação como educador. Construiu, em Uberaba, a Cidade Universitária, que leva o nome do escritor, uma honesta homenagem. 

Mário Palmério nasceu em Monte Carmelo, município situado no Triângulo Mineiro, no ano de 1916. Era um grande conhecedor da vegetação, da topografia, dos rios, da fauna e dos costumes da região. Isso se faz notar em “Vila dos Confins”. O escritor mineiro à semelhança do escritor alagoano Graciliano Ramos, estreou já quadragenário na literatura. “Vila dos Confins” como ele mesmo diz, “nasceu relatório, cresceu crônica e acabou romance”. 

O romance “Vila dos Confins” foi publicado no ano de 1956. No que diz respeito às produções regionalistas, parece ser extemporâneo. Vale mencionar que desde à “Bagaceira”, do paraibano José Américo de Almeida, publicado em 1928, passando por uma enormidade de escritores como o já citado Graciliano Ramos, além de José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Jorge Amado, Amando Fontes, dava-se a impressão de que a estética regionalista parecia esgotada. “Vila dos Confins” acabou provocando um forte impacto. Surgiu como uma lufada de vento agradável, produzindo uma curiosidade inquestionável. A escritora cearense Raquel de Queiroz, já consolidada e que, àquela altura, era uma veterana, prefaciou a primeira edição da obra. Ela verbaliza de forma certeira: “A primeira qualidade que me impressionou no escritor Mário Palmério foi este cheiro de terra, que o livro traz, tão autêntico”. Livro com “cheiro de terra” – não se tratava apenas de uma metáfora. Era uma pujante escolha estética por parte do autor. 

“Vila dos Confins” rescende à fragrância das gerais. Escutamos o dialeto do povo. É uma obra cujo enredo tem por finalidade colocar em destaque as disputas políticas em uma cidade recém emancipada, denominada Vila dos Confins. Palmério transforma em literatura a ética que preenche as disputas políticas interioranas. Esse artifício maquiavélico ainda é o “modus operandis” de boa parte das castas políticas do Brasil profundo, do Brasil distante dos centros urbanos; do Brasil dos rincões afastados, dos confins. O Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais, ainda estão pejadas por gerações de políticos que transmitem um certo jeito de se locupletar da coisa pública. Esses personagens entendem que os cargos decisórios da vida social são um direito de herança. 

Nota-se ainda na obra uma tentativa de colocar em paralelo aspectos da vida social (política) com histórias de pescas, garimpo, caças (natureza), atravessando por uma certa maneira de dizer. O texto de Palmério procura ser fiel ao dialeto do homem da terra. Sua linguagem é caudalosa. Em alguns momentos da leitura, é perceptível algum tipo de mudança repentina do fluxo narrativo. É preciso estar atento para não perder o plano central da história com seus personagens principais em disputa. 

A linguagem de “Vila dos Confins” procura se fixar numa expressividade local, regional. O autor se utiliza de acurados neologismos. Essa estratégia cria um efeito de teor bastante significativo. O vigor da linguagem permite que, em dados momentos, o leitor seja surpreendido pela criatividade do autor. Faz lembrar a beleza da estética de Guimarães Rosa. 

Mário Palmério foi um homem que teve uma sensibilidade enorme para entender o seu meio. Seu texto aponta esse caráter. Nota-se o quanto ele conhecia a personalidade do homem do interior, encurralado por estruturas sociais e políticas, como dizia o crítico Wilson Martins, “burlescas” e “grotescas”. “Burlescas” pela forma provinciana, por uma certa forma de fazer; pela cristalização de certo entendimento; pelo atraso, pela tradição; pelo entendimento que a vida social e política, necessariamente, deveria seguir certo fluxo. E “grotescas” pela força da disputa; pela violência engendrada para que certo padrão, certos resultados permanessem. E, no que diz a isso, o texto de Mário Palmério continua imensamente atual nesse Brasil de imensos confins.

Nenhum comentário: