sábado, março 14, 2015

Algumas considerações sobre "Os sertões", de Euclides da Cunha. Uma leitura futura


Nunca li Os Sertões, de Euclides da Cunha. Tenho um exemplar adquirido no ano de 2003. A assinatura impressa na página diz 14-05-2003. É assim que faço com os livros que compro: ponho a data com objetivos cronológicos exatificados. Lá pelos idos do ano 2000, tentei ler o livro. Era um jovem pouco afeito à leitura. Aquilo me custou um trauma. Quando iniciei o trajeto pelas sendas duras da prosa de Os Sertões, na parte primeira, que trata da geografia da terra, acabei caindo nos buracos, lacerações surgiram por extensões amplas; escoriações enormes se tatuaram em meu otimismo, o que me fez desistir da leitura. O fluxo dos fatos me proibiu de voltar ao livro. 

Hoje cedo, senti-me premido a revisitá-lo. Os Sertões não é um livro fácil. A erudição de Euclides da Cunha é intimidante. Trata-se de uma das mais bem-sucedidas exemplificações de como se faz uma reportagem. O autor foi enviado como adido do Jornal O Estado de São Paulo, para cobrir uma das expedições do estado brasileiro contra o Arraial de Canudos, uma aglomeração que surgira com gente pobre, miserável, supersticiosa e povoada pela esperança redentora oriunda da prédica de Antônio Gomes Maciel, alcunhado de Antonio Conselheiro. 

Os Sertões é uma obra imponente, de linguagem austera, rica em polifonias e ressonâncias. Tais características fizeram com que um escritor do calibre de Mario Vargas-Llosa se apaixonasse pela história e quisesse, ele mesmo, escrever a sua versão da história do Arraial de Canudos. Claro, sem prescindir do valor da obra de Euclides da Cunha. O livro do peruano está aqui comigo. Chama-se A guerra do fim do mundo. Penso que "fim do mundo" possua uma ambiguidade fecunda, pois: (1) pode representar a distante localização geográfica; (2) a narração de "um Brasil esquecido" pelo "Brasil civilizado", focalizando a contradição entre o Brasil litorâneo e "o Brasil profundo", o Brasil preterido pelas elites, pelo progresso; e (3) simplesmente fazer emular a ideia de um fim biblicamente apocalíptico, já que Conselheiro era dado a pregar o fim do mundo. 

O fato é que Euclides por ser engenheiro de formação militar, republicano, positivista e evolucionista, consegue fazer um "tipo de leitura" sobre esse Brasil esquecido. Os preconceitos científicos e as ideias eugênicas estão inscritas em seu texto, seguindo à risca a vanguarda intelectual da época. Termos como "tabaréu ingênuo", "caipira simplório"; ou simplesmente chamar o nordestino de "neurastênico" evidenciam o tipo de visão sustentada pelo escritor baiano. 

O fato é que Canudos é um dos exemplos de como o estado brasileiro açambarcado pelas elites, tratou historicamente os mais humildes ou como dizia Florestan Fernandes: "os de baixo". A violência que a cidade sofreu é uma vergonha histórica para o estado brasileiro. Trata-se de um caso de guerra civil do Brasil litorâneo contra o Brasil miserável do interior. É violência do otimismo bambo contra a simplicidade supersticiosa de um Brasil relegado pelos ciclos históricos. Canudos serviu de "bode expiatório" para a crença republicana do progresso propagandeado pelas elites subalternas. Um exemplo claro é a lobby criado pela intelligensia da época, que dizia que Canudos era um obstáculo, um mácula contra o "republicanismo revolucionário". Não há algo mais risível e patético. Com um pensamento como esses, chegamos a um veredicto: nossas elites são burras, cegas, criminosas, preconceituosas, xenófobas.

Fica uma certeza: lerei "Os sertões" nos próximos meses.

P.S. Hoje cedo, procurei alguns vídeos no Youtube e encontrei um material considerável sobre Canudos. Entre eles, encontrei quatro belas reportagens sobre a cidade e sobre o Nordeste. 

Um comentário:

Thiago Alvez disse...

O Sandor Marai fez um livro muito bom sobre Canudos chamado "o verdicto Canudos", consta que ele tentou ler o livro 3 vezes antes de concluir a leitura, e a crítica brasileira ficou espantada com a riqueza de detalhes da obra na descrição da geografia do local, a resposta a isso é bem simples o cara de fato leu o livro sem mais nem menos.