Nunca li Os Sertões, de Euclides da Cunha. Tenho um exemplar adquirido no ano de 2003. A assinatura impressa na página diz 14-05-2003. É assim que faço com os livros que compro: ponho a data com objetivos cronológicos exatificados. Lá pelos idos do ano 2000, tentei ler o livro. Era um jovem pouco afeito à leitura. Aquilo me custou um trauma. Quando iniciei o trajeto pelas sendas duras da prosa de Os Sertões, na parte primeira, que trata da geografia da terra, acabei caindo nos buracos, lacerações surgiram por extensões amplas; escoriações enormes se tatuaram em meu otimismo, o que me fez desistir da leitura. O fluxo dos fatos me proibiu de voltar ao livro.
Hoje cedo, senti-me premido a revisitá-lo. Os Sertões não é um livro fácil. A erudição de Euclides da Cunha é intimidante. Trata-se de uma das mais bem-sucedidas exemplificações de como se faz uma reportagem. O autor foi enviado como adido do Jornal O Estado de São Paulo, para cobrir uma das expedições do estado brasileiro contra o Arraial de Canudos, uma aglomeração que surgira com gente pobre, miserável, supersticiosa e povoada pela esperança redentora oriunda da prédica de Antônio Gomes Maciel, alcunhado de Antonio Conselheiro.
Os Sertões é uma obra imponente, de linguagem austera, rica em polifonias e ressonâncias. Tais características fizeram com que um escritor do calibre de Mario Vargas-Llosa se apaixonasse pela história e quisesse, ele mesmo, escrever a sua versão da história do Arraial de Canudos. Claro, sem prescindir do valor da obra de Euclides da Cunha. O livro do peruano está aqui comigo. Chama-se A guerra do fim do mundo. Penso que "fim do mundo" possua uma ambiguidade fecunda, pois: (1) pode representar a distante localização geográfica; (2) a narração de "um Brasil esquecido" pelo "Brasil civilizado", focalizando a contradição entre o Brasil litorâneo e "o Brasil profundo", o Brasil preterido pelas elites, pelo progresso; e (3) simplesmente fazer emular a ideia de um fim biblicamente apocalíptico, já que Conselheiro era dado a pregar o fim do mundo.
O fato é que Euclides por ser engenheiro de formação militar, republicano, positivista e evolucionista, consegue fazer um "tipo de leitura" sobre esse Brasil esquecido. Os preconceitos científicos e as ideias eugênicas estão inscritas em seu texto, seguindo à risca a vanguarda intelectual da época. Termos como "tabaréu ingênuo", "caipira simplório"; ou simplesmente chamar o nordestino de "neurastênico" evidenciam o tipo de visão sustentada pelo escritor baiano.
O fato é que Canudos é um dos exemplos de como o estado brasileiro açambarcado pelas elites, tratou historicamente os mais humildes ou como dizia Florestan Fernandes: "os de baixo". A violência que a cidade sofreu é uma vergonha histórica para o estado brasileiro. Trata-se de um caso de guerra civil do Brasil litorâneo contra o Brasil miserável do interior. É violência do otimismo bambo contra a simplicidade supersticiosa de um Brasil relegado pelos ciclos históricos. Canudos serviu de "bode expiatório" para a crença republicana do progresso propagandeado pelas elites subalternas. Um exemplo claro é a lobby criado pela intelligensia da época, que dizia que Canudos era um obstáculo, um mácula contra o "republicanismo revolucionário". Não há algo mais risível e patético. Com um pensamento como esses, chegamos a um veredicto: nossas elites são burras, cegas, criminosas, preconceituosas, xenófobas.
Fica uma certeza: lerei "Os sertões" nos próximos meses.
P.S. Hoje cedo, procurei alguns vídeos no Youtube e encontrei um material considerável sobre Canudos. Entre eles, encontrei quatro belas reportagens sobre a cidade e sobre o Nordeste.
Um comentário:
O Sandor Marai fez um livro muito bom sobre Canudos chamado "o verdicto Canudos", consta que ele tentou ler o livro 3 vezes antes de concluir a leitura, e a crítica brasileira ficou espantada com a riqueza de detalhes da obra na descrição da geografia do local, a resposta a isso é bem simples o cara de fato leu o livro sem mais nem menos.
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