domingo, agosto 11, 2013

"Fogo Morto", obra prima de José Lins do Rego. Algumas impressões

José Lins do Rego
A leitura de Fogo Morto, romance de José Lins do Rego, publicado em 1943, deixou-me a impressão de que ali estava um dos livros mais bonitos e reveladores da prosa brasileira do século XX. Fogo Morto é, sem sombras de dúvida, a maior obra do escritor paraibano. Após ter concluído "O ciclo da cana-de-açucar" com "Usina", no ano de 1936, José Lins escreveu romances de valores e expressões variadas: Pedra Bonita (1938) , que deve ser colocado na esteira de suas grandes produções por tratar da religiosidade nordestina; depois vieram Riacho Doce (1939) e Água mãe (1941); e dois anos depois nascia Fogo Morto, que retoma a temática dos cabras eito, dos barões dos engenhos, latifundiários da terra e que estendiam sua influência arbitrariamente. 

Minha paixão por Zé Lins é resultado de um fascínio pela sua prosa. Dentre os escritores regionalistas nordestinos, o mais expressivo - sei - é Graciliano Ramos, que devoto como um dos maiores escritores de todos os tempos. Livros como São Bernardo, Angústia, Vidas Secas ou Infância já são suficientes para colocá-lo ao lado daquilo de mais nobre já foi produzido pela literatura mundial. 

Todavia, a prosa ligeira e expressiva de Zé Lins é viciante. A matéria de trabalho do escritor é descrição, resultado de suas memórias. José Lins do Rego é um "Balzac rural". Alguém capaz de produzir freneticamente, fazendo análises do cenário; narrando o mesmo fato por vários ângulos, alargando o mesmo campo de observação. Talvez isso demonstre certa "deficiência" em sua produção. Ele não é um criador. É um reprodutor de experiências. Um contador escrupuloso de percepções apreendidas. E, assim, reconstitui as estruturas da sociedade patriarcal e erguida sobre a relação de poder do Nordeste. 

Ao terminar Usina, José Lins deu a certeza ao leitor de que terminaria o seu "ciclo da cana-de-açucar". Ora, uma vez que aquilo tenha acontecido, o escritor não poderia retomar a mesma temática, sob o risco de repetir-se. Mas não foi isso que se deu. Como já mencionado acima, em 1943 sai Fogo Morto e ali estava o que de mais  curioso ele havia produzido em sua carreira. Alguns entendem que Bangüe (terceiro livro do ciclo da cana-de-açucar), seja outra de suas obras destacadas. Em Fogo Morto, José Lins fez uma análise mais global da sociedade açucareira, centrando a história em três personagens emblemáticos - Lula de Hollanda Chacon, Capitão Vitorino Papa-Rabo e no mestre Zé Amaro. 

 O livro possui três partes costuradas por um liame, o capitão Vitorino. A personagem é a expressão mais lata do desejo de justiça, de escrúpulo político, de defesa dos mais fracos, da incansável vontade de fazer triunfar a equidade. Vitorino torna-se assim um espécie de Dom Quixote. Um anacrônico que verbaliza contra tudo aquilo que abala a causa do oprimido. Ele aparece em toda parte. É onipresente em sua luta. É a comicidade materializada. E é aqui que conseguimos vislumbrar seu aspecto quixotesco.

O curioso nisso tudo é a mensagem política que a personagem alavanca, posto que a ordem descrita pelo narrador é a ordem oligárquica. Vitorino em sua luta é aquele que defende "o clarear" das relações; que prega a assunção de uma ordem democrática, o fim dos "potentados da terra", dos desmandos, tirando o Brasil da ditadura dos grandes latifúndios, tão comum à Primeira República, já que a história se passa no início do século XX, época em que os engenhos começam a agonizar no Nordeste e que se consolidará durante o Governo Vargas com a onda nacionalista e industrializante.

O romance lida com a decadência de uma ordem antiga, representado por Lula de Hollanda, o coronel "Lula". Lula casa com Amélia, filha do Capitão Tomás, e sua inabilidade administrativa leva-o ao longo dos anos a perder o império erguido pelo sogro. De modo que o visível declínio do engenho Santa Fé e a visão enfermiça, religiosa e delirante do coronel Lula é o próprio aspecto agônico que representa metaforicamente a morte de toda uma ordem. É notório dentro da história, a decadência política dos coronéis, na pessoa de Lula de Hollanda, e a expectativa utópica da igualdade, representado pelo capitão Vitorino.

Cena do filme Fogo Morto (1976), de Marcos Farias
O romance ainda nos apresenta a figura do cangaço e das forças legitimadoras da ordem, representada pelo tenente Maurício. Nota-se aqui um ligação do romance com os conflitos políticos surgidos na República Velha. Antônio Silvino e o tenente Maurício são forças oponentes. Silvino é a ordem anárquica que brota fora, mas que ameaça a ordem com sua liberdade que faz tremer os poderosos da terra. Já o tenente Maurício é o outro braço do poder tentando segurar a ordem arbitrariamente. É energia fria que faz dobrar a todos. Eric Hobsbawn em seu livro Bandidos, cuja leitura estou na iminência de realizar, em sua tese sobre a origem do banditismo, diz que: "o bandistismo desafia simultaneamente a ordem econômica, a social e a política, ao desafiar os que têm ou aspiram ter o poder, a lei e o controle dos recursos". José Lins do Rego vai explorar essa temática em Cangaceiros, livro que escreveria em 1953.

O que é mais saliente em Fogo Morto é a explícita descrição da agonia política por que passava o Nordeste e as posições ideológicas do autor sendo reveladas. Enquanto nos outros livros Zé Lins se portava como um contador de histórias estático, em Fogo Morto ele deixa bem claro em sua prosa regionalista o realismo histórico da dialética dos tempos. Nesse sentido, como diz Nelson Werneck Sodré em História da Literatura Brasileira, o regionalismo surgido no século XX, difere do regionalismo de José de Alencar ou de Bernardo Guimarães (escritores românticos do século XIX), pelo alto grau de veracidade da forma. E nisso Fogo Morto acentua sua importância.

Próximas leituras do mestre Zé Lins: Cangaceiros e Pedra Bonita.

O filme Fogo Morto pode ser visto no Youtube. Vi  e gostei da adaptação.

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