
No final do Ensino Médio, eu estava estudando o Modernismo Brasileiro. Entrei em contato com trechos de livros do escritor alagoano. Li trechos de São Bernardo e de Vidas Secas, principalmente. Acabei seduzido por aquela linguagem econômica, mas profundamente precisa; cortante como uma navalha. Fui à biblioteca da escola. E lá acabei me deparando com os livros as quais eu conhecia somente algumas passagens. Iniciei a leitura de Vidas Secas. Achei aquilo sério demais. Graciliano era capaz de universalizar os dramas humanos. Havia ali mais do que simplesmente um relato regional. Um mundo polifônico estava contido naquela obra. A caminhada cega da família de retirantes que se arrasta por uma paisagem que acaba se alastrando no interior de cada personagem me impressionou. Depois de algumas leituras acabei percebendo que o mundo interior das personagens é resultado de uma transformação da consciência, como diria Marx em sua A Ideologia Alemã. A consciência do mundo se inseriu na consciência das personagens, Graciliano não queria apenas falar de seca, de privação. Ele queria fazer psicologia com a alma humana.

E é justamente munido dessa preocupação, que o velho Graça constrói aquele que um dos maiores romances já escritos em toda a história da tradição literária brasileira. A palavra que era a sua preocupação, torna-se um enigma para as personagens. Cena curiosa é aquela em que a família vai a uma festa de natal e os meninos ficam impressionados com a quantidade de coisas que havia ali. Ficaram bestificados, tentando entender se era possível todas as aquelas coisas terem nomes para que as pessoas dominassem. Como era possível a um ser humano dominar tantos nomes? O mutismo ou a realidade da não-palavra das personagens é um dos elementos mais impressionantes do livro. A palavra que é a porta de entrada para o mundo humano é negada aos personagens. Se as personagens são privadas da palavra, não é necessário dizer que elas são privadas de serem, de se comunicarem, de se projetarem; de se afirmarem enquanto sujeitos históricos; são privadas da possibilidade de enfrentar o mundo, de se humanizarem; de reivindicarem direitos perante o Estado (personificado pelo "Soldado Amarelo" que era, no fundo, alguém espoliado de direitos e que se ancorava apenas na farda que dava-lhe uma consciência de poder).


Li os outros livros de Graciliano Ramos (Angústia, Insônia, Infância, Linhas Tortas, Caetés etc) e acabei assimilando uma admiração ímpar pelo homem e pela sua obra. Há alguns meses atrás, li o livro Graciliano - Retrato Fragmentado, escrito pelo seu filho Ricardo Ramos. Pude perceber um pouco da intimidade narrada por Ricardo. Graciliano Ramos era alguém de disciplinado e com forte pendor político. Era um de poucas palavras e sempre dizia o que pensava. Ricardo escreve algumas experiências que aumentam-lhe a mítica de alguém que possuía um largo anedotário. Como este abaixo:
"E no cinquentenário do Correio da Manhã, comemorado com larga programação, transformado em feriado, meu pai ficou em casa de pijama, para no outro dia chegar ao jornal e ouvir de Paulo:
- Graciliano, você me fez uma!
- Quê?
- Não foi à missa.
- Eu sou lá homem de missa?
- Não foi ao banquete.
- Eu não sabia.
- Seu lugar ficou vazio, ao meu lado.
- Bem feito. Eu não me sento ao lado de patrão.
- Mas eu sou um patrão diferente.
- Você que pensa. Todo patrão é filho da puta
Paulo Bittencourt de uma gargalhada. Papai também. Depois, muito provavelmente, foram beber".
O fato é que Graciliano continua sendo para mim a mesma paixão de quando conheci. Sua obra será sempre atual, porque narra questões próprias do ser humano - a dor humana, a incompreensão a determinados fenômenos e a incapacidade de mudar os fatos do mundo exterior, que parecem determinados por uma força coercitiva e invisível. Graciliano transfigura o mundo com a palavra. Ele é um analista contumaz. Existe em seus textos um lirismo que não é música, mas voz calada, represada, uma angústia de seres que não são; um não dinamismo que dissolve o mundo agitado e fixa, estabilizando a realidade, como se fosse um quadro no qual cada detalhe é um mosaico constitutivo e significativo.
Esta semana comprei uma biografia do escritor, escrita por Dênis de Moraes ("O Velho Graça"). Comprei na Livraria Cultura e estou esperando, com certa ansiedade. Quero lê-la no feriado.
Obrigado, mestre Graça! Você é uma inspiração!
Nenhum comentário:
Postar um comentário