sábado, outubro 27, 2012

Graciliano Ramos - 120 anos de literatura

Hoje, o Brasil comemora o nascimento de um dos seus filhos mais ilustres, Graciliano Ramos, o célebre escritor alagoano. O velho Graça (como era conhecido pelos mais íntimos) nasceu em 27 de outubro de 1892, no munícipio de Quebrangulo. Não é minha intenção falar da vida desse escritor fantástico que abriu as portas do mundo da literatura para mim. Quero apenas externalizar a minha devoção ao texto de Graciliano Ramos. 

No final do Ensino Médio, eu estava estudando o Modernismo Brasileiro. Entrei em contato com trechos de livros do escritor alagoano. Li trechos de São Bernardo e de Vidas Secas, principalmente. Acabei seduzido por aquela linguagem econômica, mas profundamente precisa; cortante como uma navalha. Fui à biblioteca da escola. E lá acabei me deparando com os livros as quais eu conhecia somente algumas passagens. Iniciei a leitura de Vidas Secas. Achei aquilo sério demais. Graciliano era capaz de universalizar os dramas humanos. Havia ali mais do que simplesmente um relato regional. Um mundo polifônico estava contido naquela obra. A caminhada cega da  família de retirantes que se arrasta por uma paisagem que acaba se alastrando no interior de cada personagem me impressionou. Depois de algumas leituras acabei percebendo que o mundo interior das personagens é resultado de uma transformação da consciência, como diria Marx em sua A Ideologia Alemã. A consciência do mundo se inseriu na consciência das personagens, Graciliano não queria apenas falar de seca, de privação. Ele queria fazer psicologia com a alma humana.


Os personagens de Vidas Secas são privados da palavra - e a palavra para o escritor possuía uma importância capital. Encontramos em outros textos escritos por ele uma espécie de explicação para o seu ofício. Na crônica "As lavadeiras", ele firma algo emblemático. Diz ele que 'a palavra foi feita para dizer e não deveria brilhar como um ouro falso'. Em seu extraordinário Infância, que conheci mais tarde, encontramos a seguinte afirmação: "Na escuridão percebi o valor enorme das palavras". É por causa dessa preocupação exarcebada com a palavra, que percebemos os seus livros como mosaicos. Não há execessos. Apenas o exato. Uma peça fora da estrutura derruba o restante do todo.

E é justamente munido dessa preocupação, que o velho Graça constrói aquele que um dos maiores romances já escritos em toda a história da tradição literária brasileira. A palavra que era a sua preocupação, torna-se um enigma para as personagens. Cena curiosa é aquela em que a família vai a uma festa de natal e os meninos ficam impressionados com a quantidade de coisas que havia ali. Ficaram bestificados, tentando entender se era possível todas as aquelas coisas terem nomes para que as pessoas dominassem. Como era possível a um ser humano dominar tantos nomes? O mutismo ou a realidade da não-palavra das personagens é um dos elementos mais impressionantes do livro. A palavra que é a porta de entrada para o mundo humano é negada aos personagens. Se as personagens são privadas da palavra, não é necessário  dizer que  elas são privadas de serem, de se comunicarem, de se projetarem; de se afirmarem enquanto sujeitos históricos; são privadas da possibilidade de enfrentar o mundo, de se humanizarem; de reivindicarem direitos perante o Estado (personificado pelo "Soldado Amarelo" que era, no fundo, alguém espoliado de direitos e que se ancorava apenas na farda que dava-lhe uma consciência de poder). 

Mais tarde li São Bernardo e aquilo me deixou com a impressão de que se tratava de uma obra filósofica sobre a natureza humana - novamente, Graciliano universaliza o regional. Os livros de José Lins do Régo ou Jorge Amado também trazem um regionalismo. Uma narrativa memorialística. Eivada de realismo. Mas o que difere Graciliano Ramos desses dois escritores é que ele trabalha perspectivas que amplificam valores por intermédio das personagens. Paulo Honório é uma figura que me fez pensar no quanto a natureza humana pode ser desmantelada pelo poder. Nele notamos a vontade-de-poder nietzscheana, mas que acaba por induzi-lo ao niilismo completo. O desejo fáustico de ser grande, de conquistar o mundo o transforma em monstro. Tudo ele transforma em algo a ser conquistado. Até mesmo Madalena, que acaba se suicidando. Paulo Honório acaba solitário. Com a alma dilacerada. E o último capítulo de São Bernardo é uma das coisas mais lindas que já li em minha vida. Paulo Honório enxerga dentro de si, por meio de uma reflexão amarga, os monstros do orgulho e da ganância. Ele pensa sobre si mesmo: "... a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste". 

Mais tarde, eu li Memórias do Cárcere. E o turbilhão do testemunho de Graciliano Ramos produziu mais efeitos impressionantes. Vale mencionar que em Graciliano não notamos a criação da fantasia. O autor de Vidas Secas não criava mundos como um Machado de Assis, por exemplo. Sua literatura é resultado da observação. Desde Caetés, um retrato da vida provinciana, até Viagens, que é o seu testemunho sobre impressões colhidas no leste europeu, percebemos essa característica. Quando lemos, por exemplo, os seus relatórios administrativos da prefeitura de Palmeira dos Índios ao governador do estado de Alagoas, notamos que existe em Graciliano uma vocação - a de ter uma capacidade crítica para refletir sobre a realidade em que está inserido. Portanto, é assim que notamos o quanto as Memórias do Cárcere se constituem em um relatório feroz. O modo a qual Graciliano descreve a arbitrariedade de uma força invisível e que avilta, torna os seres humanos em pulgas e ratos. A condição humana, mais uma vez, é diminuída a níveis opressivos. Os presos políticos vivem a humilhão física, da dignidade humana, uma espécie de submissão moral. 

Li os outros livros de Graciliano Ramos (Angústia, Insônia, Infância, Linhas Tortas, Caetés etc) e acabei assimilando uma admiração ímpar pelo homem e pela sua obra. Há alguns meses atrás, li o livro Graciliano - Retrato Fragmentado, escrito pelo seu filho Ricardo Ramos. Pude perceber um pouco da intimidade narrada por Ricardo. Graciliano Ramos era alguém de disciplinado e com forte pendor político. Era um de poucas palavras e sempre dizia o que pensava. Ricardo escreve algumas experiências que aumentam-lhe a mítica de alguém que possuía um largo anedotário. Como este abaixo:

"E no cinquentenário do Correio da Manhã, comemorado com larga programação, transformado em feriado, meu pai ficou em casa de pijama, para no outro dia chegar ao jornal e ouvir de Paulo:
- Graciliano, você me fez uma!
- Quê?
- Não foi à missa.
- Eu sou lá homem de missa?
- Não foi ao banquete.
- Eu não sabia.
- Seu lugar ficou vazio, ao meu lado.
- Bem feito. Eu não me sento ao lado de patrão.
- Mas eu sou um patrão diferente.
- Você que pensa. Todo patrão é filho da puta
Paulo Bittencourt de uma gargalhada. Papai também. Depois, muito provavelmente, foram beber".

O fato é que Graciliano continua sendo para mim a mesma paixão de quando conheci. Sua obra será sempre atual, porque narra questões próprias do ser humano - a dor humana, a incompreensão a determinados fenômenos e a incapacidade de mudar os fatos do mundo exterior, que parecem determinados por uma força coercitiva e invisível. Graciliano transfigura o mundo com a palavra. Ele é um analista contumaz. Existe em seus textos um lirismo que não é música, mas voz calada, represada, uma angústia de seres que não são; um não dinamismo que dissolve o mundo agitado e fixa, estabilizando a realidade, como se fosse um quadro no qual cada detalhe é um mosaico constitutivo e significativo.

Esta semana comprei uma biografia do escritor, escrita por Dênis de Moraes ("O Velho Graça"). Comprei na Livraria Cultura e estou esperando, com certa ansiedade. Quero lê-la no feriado. 

Obrigado, mestre Graça! Você é uma inspiração!

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