Escrevi este texto há muito tempo atrás. Faz parte de umas memórias que principiei a escrever em 2006. Naquela época, eu havia lido o livro "Infância", de Graciliano Ramos, pela segunda vez e acabei me entusiasmando. O texto abaixo constitui um dos trechos dessas memórias. Fala como se deu o meu primeiro contato com a escola e como a minha primeira professora foi marcante para mim. Agradeço a todos os demais professores que logo em seguida eu conheci na minha caminhada como estudante. Todos eles foram fundamentais. Eis alguns nomes que eu consigo lembrar: Marina, Ivanete, Geovanete, Ana Sueli, Adalbertos, Popó de Magalhães, Paulo, Luis Fernando, Mário Bispo, Carlos Mota, Ricardo, Cíntia, Consuelo, Soraia, Francisca, Dioney, Veruska e tantos outros que a memória não consegue fazer o exercício de lembrar. Obrigado a todos vocês!
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Recebi um livro corpulento... Papel ordinário,
letra safada. Apesar disso emaranhei-me em regras complicadas, resmunguei
expressões técnicas e encerrei-me num embrutecimento admirável.
Graciliano
Ramos, in Infância, p.120
Aos sete anos de idade, numa certa tarde, minha mãe me
relatou que eu iria à escola. Meu primeiro contato que tive com as letras se
deu por uma curiosidade assistida, por uma observação imaginosa. Minhas tias
estudavam numa escola rural. Todos os dias eu as via preparadas para ir à
escola. Precisava de um ritual: banhos, cabelos penteados, sapatilhas, saias
pinçadas – os homens com shorts que
iam até os joelhos – camisa branca impecável. Às vezes pegava o caderno e me
aturdia na letra miúda e embaraçosa. Certamente aqueles códigos impressos na
folha branca do caderno fazia parte de uma gente superior. Estudar era
privilégio. Decodificar as regras, também. A escola com certeza era um local de
pessoas limpas, de aprendizado para aqueles que queriam ser gente. Eu andava
descalço. Meus pés haviam adquirido uma camada grossa no chão quente. Os
espinhos não me fustigavam mais. Os tocos da chã eram-me insensíveis. Menino
afeito à rusticidade, queriam me introduzir no local das regras civilizadoras.
Eu iria à escola.
Como seria esse mundo de pessoas limpas, de gente que desembrulhava códigos,
que aprendia regras para ser gente? Possivelmente – imaginava – eu nem
brincaria mais. Não andaria mais descalço. Deixaria de tomar banho no riacho.
Atinaria para a repreensão dos mais velhos. Conceitos poderosos seriam
alinhavados na minha mente. A notícia de minha mãe gerou ansiedade.
Possivelmente, eu ingressaria num local de gente sabida. Sairia da classe dos
iletrados e me alistaria no exército dos doutos. Leria livros. Minha avó me
solicitaria a fim de que eu escrevesse cartas para os meus tios que tinham ido
para São Paulo. Teria importância pelo fato de me tornar um menino sabido como
meu primo Roberto que estudava na cidade e lia livros debaixo das mangueiras e
jaqueiras nas tardes quentes da Zona da Mata pernambucana.
A primeira impressão funda que se apresentou a mim foi a
necessidade surgida de esfregar as unhas dos pés e das mãos; limpar os ouvidos;
tirar os cascões dos pés rachados; pentear os cabelos. Minha mãe dizia que
menino educado tinha que mudar a postura. Dali para frente, dizia minha mãe,
todos os dias eu teria que andar bem vestido, com os cabelos alinhados e com as
unhas impecáveis. Hoje penso em regras militares. Metodismo draconiano.
Minha mãe engomou a minha roupa. Comprou alpercatas.
Meteu-me dentro de um uniforme limpo e de calçados apertados. A princípio
caminhei desenvolto, mas aos poucos o calçado ordinário maltratou-me os pés.
Primeiro dia: minha mãe acompanhou-me. Foi entregar-me à professora. Fazer
recomendações. Falar quem eu era. A professora olhou-me gentilmente. Não tinha
mais que a oitava série. Era a instrutora dos “bichos” acanhados colocados na
sala de aula. Filhos de agricultores que viviam da subsistência. Matutos. A
maioria, homens que mal sabiam assinar o nome. Totalmente cegos para a escrita.
Entrevados para os livros. Desde cedo haviam sido treinados na tarefa rude.
Ajuntaram-se com mulheres como eles. Tiveram proles como os coelhos e agora os
enfiavam numa escola rural. Saga cruel. A maior parte do dias esses meninos
passavam na roça, carpindo, plantando, adubando e na outra parte se dedicavam à
escola. Eu seria mais um integrado ao grupo.
Olhava curioso
para a sala. A casa onde funcionava a escola era tosca. Não se distinguia muito
da que eu morava. A diferença se estabelecia no fato de que esta tinha vãos, e,
aquela, não. Era uma sala pejada de bancos duros, chãos. Ali, mais de cinqüenta
seres se emaranhavam na tarde quente e seca
– as aulas eram sempre à tarde. No turno da manhã a escola não
funcionava. Ali estavam os alunos da primeira à quarta série. Todos ajuntados
como bichos-de-ruma. Os mais adiantados já sabiam assinar o nome e ostentavam
desembaraço ao recitar a cartilha.
Minha mãe
deixou-me. Fiquei sozinho na selva desconhecida. Algumas criaturas eu conhecia
de brincadeira. Ali estava o filho de Antônio Fragoso, o filho de João da
Horta, de Bil Nunes, de seu Suneca. Olhos a me despirem. A professora gorda, de
cocó enorme no meio da cabeça, vestido florido, alegre, de rosto fino, nariz
aquilino e óculos capenga, disse:
-
Gente, olha só... esse é o Carlos. Ele é o novo colega de vocês.
Procurei um
lugar para sentar e me escondi. Afundado em mim mesmo, tentava capturar a explicação
ininteligível para os alunos mais adiantados. O seu modo tranqüilo de
professora enfeitiçava os meus olhos. Parecia uma fada madrinha a ensinar
receitas de mágicas para os aprendizes. Distribuía tarefas. Finalmente,
aproximou-se de mim e me entregou uma cartilha de folhas amarelas. Cartão
interessante. Ainda lembro das frases: “Rui tinha uma rede”. “O rato roeu a
roupa do rei de Roma”. Frases cantadas, sibiladas, densamente musicais.
Pareciam feitas para serem decoradas. Fiquei impotente ali parado com aquele
papel que continha códigos estranhos.
Os primeiros
aprendizados se deram com força e resistência. Linhas semidesenhadas precisavam
ser cobertas. Ficava ali mergulhado naqueles códigos pontilhados a cobrir o
“a”, o “b”, o “c”, o alfabeto. A mão emperrava. Parecia resistir arduamente à
domesticação. Resignava-me. A professora pegava-me as mãos e ajudava o lápis a
correr pela folha pardacenta. Minhas mãos eram pesadas. Ficava ali o tempo
inteiro a memorizar o alfabeto; repeti-lo, grifá-lo na mente; riscá-lo;
sublinhá-lo no interior. Escrevê-lo à lápis nas folhas alvas da memória. Aquilo
era exorbitante. Doía-me o juízo. Certamente aprender era tarefa difícil.
À hora da
tabuada, a mente enchia-se de espaços, de branquidão total. Os números se emaranhavam
num cipoal desconexo.
- Quanto que é
4x4? – perguntava-me a professora de régua na mão.
A sensação de
que levaria um bolo me afundava ainda mais num embrutecimento enorme. A
professora olhava-me. Penalizava-se do meu desconcerto. Indicava-me, ajudava-me
com sua pachorra que promovia grandes torturas.
-
Quanto que é 4x1?
-
Quatro – respondia.
-
4x2?
-
Oito – respondia.
-
4x3? – perguntava de novo.
-
Doze, professora.
-
Então, quanto que é 4x4, Carlos? - Olhos lacrimejavam no esforço
incontido.
-
Dezesseis!!!!
Eu, criatura tímida,
percebia o suor se empastar na testa. Após cada teste, saía como de uma luta.
Para livrar-me da palmatória era preciso entregar-me ao estudo. Deve ser por
isso que gosto tanto de estudar e ler. São as reverberações de um tempo que eu
me via premido a aprender por conta da férula da professora Marina. A mestra
dizia do alto da sua autoridade:
- Vocês estão
muito fracos. Aqueles que não estudarem vão levar um bolo na mão – sentado no
meu banco desconfortável, olhava o objeto longo, de madeira, ao lado da
criatura enorme.
Todas as
tardes, nós somente íamos para casa após recitar a cartilha ou mostrar que
estávamos com a tabuada na ponta da língua. Não sabia ler ainda, mas havia
decorado, pelas figuras que a cartilha apresentava o que cada um dos desenhos
queria dizer. Uma palavra que repetia muito era “árvore”. Ao enunciar esta
palavra, geralmente a citava, não por saber o que os morfemas significavam, mas
por causa da prática comum, de saber que os vegetais graúdos que davam frutos
eram chamados de árvores. A professora corrigia-me:
- Você falou
errado. Não se diz árvore e sim arvore. Ia para casa com aquela sentença na
algibeira da desconfiança. Certamente havia um equívoco na pronúncia da
professora. Os mestres poderiam errar! Aquele “arvore” pronunciado sem o acento
agudo, como vim a saber mais tarde, dava uma identidade nova à palavra. A
“árvore” que eu conhecia não era a “arvore” repetida com tanta contumácia pela
professora todas as vezes que recitava a cartilha. Era tudo um grande
desconcerto. Resignava-me ao engano da professora.
Até hoje me concentro
nesse erro daquela professora. Porque ela dizia “arvore” ao invés de “árvore”
eu não sei até hoje. Olhava para os vegetais maiores não como arvores, mas como
árvores. Certamente a minha professora estava errada. Entendi que a escola nem
sempre ensina a ler o mundo corretamente.
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