terça-feira, março 05, 2013

Uma elucubração sobre os dois primeiros capítulos de Gênesis


Os capítulos iniciais do livro de Gênesis são intrigantes sobre vários aspectos. Durante a história muitas discussões foram suscitadas em torno da origem, da autoria e da literalidade desse livro. Para a tradição, Gênesis teria sido escrito por Moisés - bem como o restante do Pentateuco. Todavia, conforme narra o último livro do Pentateuco, Deuteronômio, Moisés morreu antes que o povo entrasse na terra prometida (e antes de se concluir o seu ciclo narrativo). A teologia traditiva tem buscado explicar este fato de forma a atribuir a Moisés a autoria do livro das origens. Não há evidências internas (em Gênesis) que atestem que Moisés  seja o autor do livro. No que diz respeito aos aspectos científicos, não há uma explicação fechada, objetiva, corroborando com a autoria mosaica. As explicações conservam-se sob o aspecto da fé. O autor de Hebreus, afirma: "Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das cousas que não aparecem" (Hb. 11.3). Ficando assim claro que a fé é a base propulsora que autentica a atividade criadora do divino.

Encontramos no primeiro capítulo muitos aspectos que não devem ser interpretados literalmente. Uma interpretação literal do texto traz prejuízos para a compreensão de modo consequente. Percebe-se, pelo menos no capítulo primeiro, muitos elementos metafóricos. O texto deixa nas entrelinhas que a narrativa é resultado da compilação de uma tradição. Enxergam-se (dentro do livro de Gênesis) vários blocos avulsos que dão a entender que não se trata de um único autor. É importante entender que a Bíblia é um livro humano, pois usa a linguagem humana, os caracteres literários humanos, os dramas humanos, o mundo humano. Para muitos, ela é um livro híbrido - com caracteres humanos e divinos. É inspirada, por isso, é divina; e usa elementos que são próprias da realidade e do mundo, por isso, é humana. Por isso ela deve ser lida e interpretada nessa perspectiva. A maioria daqueles que leem a bíblia de acordo com a tradição, busca interpretá-la sob a ótica literal. Tal fato se deve a uma espécie de medo. Entende-se basicamente que uma vez que se faça isso, a bíblia sofre algum tipo de prejuízo. Essa atitude é fruto de um desarrazoamento. Estriba-se no entendimento que os assuntos divinos precisam ser protegidos, advogados. Não creio que assim seja. 

Os capítulos iniciais sobre a criação, conforme posso notar com minhas limitações, é uma espécie de explanação dada para explicar muitos dos fatos sobre a realidade. Na verdade, trata-se de um poema cujo sentido é incluir por meio de símbolos e arquétipos uma resposta para o mundo: o céu, a terra, os mares, as estrelas, a existência do homem, as florestas. Ou seja, como é porquê tudo isso existe. Tudo isso está incluído nos fatos descritos no capítulo primeiro. Interpretá-lo literalmente, passa-nos a ideia de que Deus um dia resolveu brincar de “fazer o mundo”.

Seguindo esse mesmo raciocínio, observa-se no versículo 31 do capítulo 1, uma afirmação interessante: “Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom”. A Bíblia na linguagem de hoje diz que “Deus viu tudo quanto havia feito e tudo era muito bom”. Quero enfatizar aqui o fato de Deus “ver” e se “impressionar” com aquilo que fizera. Ou seja, o que fica patente é o fato de que o próprio Deus da criação “toma um espécie de susto com aquilo que criou”. É como se Deus não conhecesse os seus próprios poderes. Deus toma sustos com sua própria atividade criativa. Não há base filosófica para entender tal fato. Há uma coerência no ser de Deus, conforme entende a teologia. Seria aquilo que Parmênides afirma em sua filosofia: “Aquilo que é, é”. O ser só pode ser sendo. Se Deus é, mas não possui constância em ser, ele não pode ser. Se Deus sendo perfeito cria, mas sendo perfeito, assusta-se com aquilo que cria, perde o atributo da perfeição. Nisso vejo residir certa ilogicidade - como muitas são as ilogicidades da bíblia.

Já no capítulo 2.1-2, percebe-se em primeiro lugar a criação da história para sustentação do fato. Em suma: a história de Israel mostra que o sábado é “sagrado”. Deve-se necessariamente isso ao fato do mundo ter sido criado em 6 dias e ao sétimo (sábado) Deus descansou de Sua criação. Por que o sábado deve ser tido como santo? Todas as coisas não foram criadas “boas”? E se Israel, por ter na sua história sacralizado o sábado, tivesse criado a narrativa com o fim de sustentar a crença histórica; em outras palavras, criado a narrativa do Gênesis para sustentar a sua própria história, tratando-se especificamente da “história de um povo”? E o raciocínio que se estabelece é o de, que, uma vez que o próprio Deus da criação descansou nesse dia, por que não santificar esse mesmo dia? Claro, o que falo aqui não passa de uma hipótese gratuita, livre. Afirmo tais coisas por enxergar essas possibilidades no texto. Analisando sem romance esse fato e sob o prisma literário, a alternativa que nos resta é o da interpretação não literal desses dois primeiros capítulos.

Quase todos os povos orientais têm uma espécie de narrativa muito assemelhada ao texto de Gênesis, o que nos dá a ideia de que se trata um texto que é resultado do inconsciente coletivo. Houve muitos povos que também desenvolveram um gênesis: os egípcios, os babilônicos, os acádios, assírios, hindus e etc. Parece haver para os antigos uma espécie de mito, uma tradição que era passada de pai para filho e que era fruto de um entendimento histórico. Não havia ciência conforme entendemos hoje. Buscava-se interpretar o mundo por meio do mito e da religião. Com isso não quero dizer que os antigos estivessem errados no seu entendimento. Eram os recursos de que dispunham para responder a uma inquietação. Entendo que as escrituras são o resultado desse fenômeno, dessa mitologização interpretativa por parte dos antigos. Quero dizer que é preciso interpretar esses fenômenos com as ferramentas certas e as escrituras, também.


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