"Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados" - Brás Cubas
Durante muito tempo alimentei dentro de mim uma oposição branda à genialidade de Machado de Assis. Questionava os laudatórios ufanistas que se faziam ao escritor carioca. Achava aquilo demasiado. Passei mais de dez anos sem lê-lo. Infelizmente. Essa negligência, creio, foi um prejuízo sem igual. Machado é daqueles escritores que precisam ser lidos de forma incansável, religiosamente. O autor de Memórias Póstumas não deve nada aos chamados grandes escritores do
mundo. Lê-lo com atenção é encontrar tesouros velados; ironias finas; críticas geniais à sociedade; impudências variadas; humor ríspido, bufônico; tiradas sensacionais; originalidade e ousadia.
Meus conceitos mudaram completamente em relação ao escritor este ano após ler dois de seus livros. Ainda bem. Em janeiro, enquanto estava de férias em João Pessoa-PB, li Quincas Borba, obra cujo nível de domínio da técnica do romance e dos personagens impressiona; sem falar na crítica terrível que desfere contra a sociedade hipócrita de sua época. E, agora, no mês julho, no meu recesso, tive a oportunidade de revisitar Memórias Póstumas de Brás Cubas. Passei dois dias - 13 e 14 - na cidade de Pontalina, município goiano, situado a 130 Km da capital. Sentado no banco da frente da casa da avô da minha esposa, eu pude constatar na leitura frenética que fiz das Memórias, que o livro é uma das coisas mais sensacionais que já foram produzidas. Pude captar dessa vez, boa parte daquele paisagem infinda que se espraia nos seus romances. E como diz muito acertadamente Roberto Schwarz em seu Um mestre na periferia do capitalismo, "a prosa narrativa machadiana é das raríssimas que pelo mero movimento constituem um espetáculo histórico-social complexo (...) Neste aspecto caberiam comparações com a prosa de Chateubriand, Henry James, Marcel Proust ou Thomas Mann".
Memórias Póstumas, escrito em 1881, inicia aquela grande fase que traria livros como, por exemplo, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, Quincas Borba e Memorial de Aires; sem falar no conjunto de contos contidos em Papéis Avulsos. Especificamente em Memórias Póstumas, Machado firma um tipo de "impudência narrativa" que consegue dá um ritmo peculiar à obra. A epígrafe em forma de saudação já é um grande disparate literário: "ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver", deixa de forma clara a mensagem que ali não existe um narrador comum. Somente alguém com muita ousadia e domínio da forma para encetar algo assim.
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Aspecto curioso de Brás Cubas é o veio enciclopédico. Ele utiliza variadas citações e referências. Começa pelo Pentateuco, conjunto de cinco livros Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) considerados como sagrados pela religião judaico-cristã. Todavia, essas menções intertextuais se expandem dos tempos bíblicos à literatura clássica; dos romanos à Idade Média; da Reforma ao Renascimento; da Guerra Civil Inglesa às unificações alemã e italiana; de Stendhal a Lawrence Stern; de Verdi à esposa de João Caetano. Não são simplesmente alusões frias, pedantes, desnecessárias, empoladas. Não. O narrador o faz com tanta graça e leveza que, uma vez que fossem extraídas, traria prejuízo para o texto.
Cada capítulo é construído com uma liberdade de forma que põe Memórias Póstumas na esteira do moderno. Machado inova com isso. Temos assim uma obra com muitas polifonias. É isso que torna essa obra algo perene e inesgotável para as análises. Um exemplo da genialidade de Machado está, por exemplo, no capítulo 68, denominado "Vergalho". Transcrevo-o abaixo:
"Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: — Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão! Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.
— Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
— Meu senhor! gemia o outro.
— Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
— É, sim, nhonhô.
— Fez-te alguma coisa?
— É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!
Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, — transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!"
— Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
— Meu senhor! gemia o outro.
— Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
— É, sim, nhonhô.
— Fez-te alguma coisa?
— É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!
Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, — transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!"

Machado tem aumentado o seu prestígio internacional. É lamentável que isso não tenha ocorrido há mais tempo. Penso que ele não fique abaixo de qualquer outro grande romancista francês, russo, americano ou inglês como dito acima. Machado passou a ser reverenciado por nomes como Salman Rushdie, Martin Amis, Paul Auster e Woody Allen. Manguel - ainda vivo - e Carlos Fuentes - já falecido - elaboraram estudos sofisticados sobre o Bruxo do Cosme Velho. Susan Sontag elogia Machado em Questão de ênfase, colocando-o como o maior autor da América Latina. E Harold Bloom o coloca naquele rol dos cem maiores escritores da história.
Ou seja, Machado de Assis é um caso de gênio com uma galáxia de inesgotabilidade literária. Sua originalidade coloca-o entre os grandes. Entre os imortais.
P.S. Depois tentarei escrever sobre a parte final de Memórias Póstumas.
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