segunda-feira, abril 05, 2021

A metáfora da ressurreição

 




“Em verdade, em verdade, vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto”. Jo 12.24

Ontem, a cristandade comemorou a Páscoa, que tem a sua origem no judaísmo. Para os judeus, a instituição da Páscoa está relacionada com a saída do Egito, conforme se narra no Antigo Testamento. Páscoa é a festa do Pesach, cujo significado é “passar adiante”. O rito alicerça-se em duas ações: comer pão ázimo e imolar o cordeiro. Quando da saída do povo de Israel do Egito, conforme descreve o livro de Êxodo, foi necessário derramar esse sangue sobre o umbral da porta para que a família fosse poupada pelo anjo exterminador.

No cristianismo, a Páscoa está ligada à ressurreição de Jesus. Para os cristãos, trata-se do dia em que Jesus abandonou o túmulo, após o terceiro dia da sua morte. Este é um fato que intriga. Não existem provas materiais desse evento. Apenas a Bíblia o descreve como sendo um fato histórico. Todavia, não há indícios antropológicos de que isso tenha se dado com o grau de facticidade narrado pelos evangelhos. A Bíblia não é um livro de ciências ou de história; e até mesmo os fatos históricos, estão eivados de erros e incertezas.

Segundo o escritor e estudioso do Novo Testamento Bart D. Ehrman, um dos grandes críticos dos dogmas cristãos, o que torna vida Jesus um fato singular para os seus primeiros seguidores foi a crença de que ele tenha ressuscitado. Sua mensagem em um primeiro momento não chamou atenção de muitos judeus. Afinal, havia inúmeros pregadores com mensagens apocalípticas. Todos eles denunciavam o descalabro moral de Israel, a dominação romana e uma possível chegada de um domínio divino a fim de libertar Israel do julgo e da humilhação. Segundo Ehrman diz em seu excelente livro “Como Jesus se tornou Deus”, sobre nenhum deles pode se afirmar que houve ressurreição. Essa crença singular dá a Jesus um atributo particular.

E aqui reside o problema, pois, os escritores da Bíblia – muitos deles viveram 50, 60, 70 anos após os supostos eventos narrados – e, assim, não testemunharam os fatos descritos. Houve um movimento, inicialmente, estruturado numa tradição oral sendo transmitida pelos primeiros seguidores de Cristo. Alguém pode dizer, mas Mateus e João foram discípulos. Não se sabe ao certo se os dois evangelhos foram escritos por essas pessoas. É possível que o Evangelho segundo Mateus tenha sido escrito entre os anos de 70 e 115 d.C. por um autor anônimo de origem judaica, que utilizou uma narrativa já existente. Já o Evangelho segundo João, também, foi escrito por autor anônimo, provavelmente numa data entre 90 e 110 d.C. Em seu estilo é o mais distinto dos evangelhos, constituindo um evento à parte. As frases estão carregadas de uma forte intencionalidade teológica. Os outros evangelhos se pautam nos exemplos, nas ações de Jesus. João, por sua vez, é fortemente verbal; chancelado por afirmações mistificadoras.

O que quero enunciar após essa digressão é que a ressurreição de Jesus é um registro da fé, mas não da história. Fé e história nem sempre estão conectadas. Eu posso ter fé sem, necessariamente, conectá-la a eventos materiais. Em muitas situações, quando a história não cabe ou não se harmoniza com as categorias da religião, aquela acaba sendo preterida e subjugada pela fé.

A ressurreição de Jesus – não falo Cristo, pois Cristo é uma categoria teológica – deve ser compreendida como um evento metafórico, mitológico. Desse suposto evento, deve-se estruturar esperança em melhores dias; a busca pela afirmação da vida; uma crença inabalável na existência. Todavia, isso não deve acontecer pelo fato de ter havido uma ressurreição física – esta não existiu – mas, na certeza simbólica de que algo com esses termos, faz brotar dentro de cada um de nós um apego pela vida. A ressurreição é uma aposta na esperança. Em dias tão turbulentos como os nossos, a metáfora da ressurreição nos anima a caminhar, a “passar adiante”. É uma posta de que a vida pode vender a morte – e isso nunca foi tão necessário no Brasil como agora.

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