segunda-feira, dezembro 30, 2024

Os becos e a memória

 

“...dizem uns que a vida é um perde e ganha. Eu digo que a vida é uma perdedeira só, tamanho é o perder”. P. 29


Terminei a leitura de minha primeira experiência com a prosa da escritora Conceição Evaristo. Em agosto de 2023, tive a oportunidade de vê-la na 1ª edição da Fli Paracatu. Escutei-a rapidamente em uma das mesas. Sua fala mansa, com o sotaque e a simplicidade da gente comum, traduzia muito bem a identidade de seus personagens. Acabei comprando um dos seus livros ao longo da Feira – Becos da Memória. Tive a oportunidade de lê-lo somente agora.

O título da obra é bonito, evocativo em seu delicado sentido poético e em sua significação literária. Becos são “quebradas”, locais de fuga, pontos de passagem - ou, simplesmente, um local de encurralamento, onde não há saída. Memória, por sua vez, é aquele local do indizível, dos afetos. É o lugar em que os fatos são colhidos pela subjetividade, mas a partir das experiências vividas pelo sujeito. Todo indivíduo possui memórias. Essas memórias são capazes de formar o terreno que estrutura a personalidade e fazem com que haja um sentido para o mundo. Um povo, uma comunidade, também, possui memórias. Ou seja, a memória é a categoria existencial que permite que os homens continuem homens e sejam capazes de se entenderem historicamente.

Dessa forma, beco, em sua semântica, pode suscitar a ideia de tortuoso. A memória, quando não escutada, validada,  pode se perder nas curvas da história. Principalmente, as memórias daquelas pessoas a quem não é dado o direito de ser. Essa dimensão está implícita na obra de Evaristo, principalmente no termo cunhado por ela – escrevivência (escrever + vivência). Essa aglutinação representa muito bem o projeto literário da escritora mineira, radicada no Rio de Janeiro.

A sua própria história permite que entendamos o significado dessa palavra. Evaristo - primeiramente - mulher preta, nasceu em Minas Gerais. Ainda muito jovem, foi para o Rio de Janeiro. Trabalhou como doméstica, algo tão próprio às mulheres de sua cor, às mulheres de sua origem. Foi a leitura, a escrita e as vivências que a fizeram sair do esquecimento subterrâneo. Atuou como professora. Formou-se em Letras. Fez mestrado e doutorado. Aos poucos, foi costurando as palavras e trazendo à tona os riscados do tempo que ficam em forma de memória.

Evaristo afirma que a memória do povo preto foi colocada em um limbo. Não foi dada ao negro contar e ressignificar sua própria memória. Alguém fala por ele; determina-lhes o local onde devem ficar; a forma como devem pensar; e o tipo de recorte histórico que devem realizar. Os negros foram aqueles que mais tiveram a memória roubada. É preciso reconstruir o passado, mas como não há documentos escritos em abundância, afinal, a história dos negros é uma história subterrânea, é preciso traduzir suas cores e potência por meio da ficção. A escritora afirma no texto que abre Becos da Memória que “nada que está narrado em becos da memória é verdade, nada que está narrado em Becos da Memória é mentira”. A realidade se apoia na ficção, mas a ficção também é um elemento que fornece mais conteúdo à realidade. Nos textos de Evaristo, as duas se irmanam para produzir a escrevivência. Alguns dos personagens do livro são reais como, por exemplo, o tio Totó.

Conceição Evaristo

O processo de transposição da escrita e da vivência não tem o objetivo de traduzir lutas individuais. Ela se assenta no coletivo. Se fosse apenas subjetiva, morreria no próprio indivíduo. A luta pelo resgate da memória não deve ser a luta de um sujeito refratário, mas de uma coletividade que se escuta e se entende. Em Becos da Memória constatamos esse movimento da apalavra à procura de tornar efetiva a luta pela existência de pessoas marginalizadas. Marginalizar é uma forma de impedir que a memória continue viva e pulsante.

Encontramos no livro um mosaico de micro-vivências, formando um tecido repleto de capilaridades. Os pequenos relatos formam uma paisagem em que há muitos elementos capazes de criar a uniformidade da dor. As personagens são desgraçadamente infelizes à sua maneira. O silenciamento cria uma aniquilação social. A impossibilidade da fala e da visibilização da miséria cria espaços para a violência contra essas existências; e essas violências são sentidas no corpo e, sobretudo, na impossibilidade de ser.

Confesso que não gostei da obra no início da leitura. Depois, fui me acostumando aos personagens. São homens, mulheres, crianças, velhos e velhas que carregam os dramas de milhões de pessoas que habitam favelas, morros e locais marginalizados; sobretudo, são mulheres, as primeiras vítimas da impossibilidade de terem memória e que sentem no corpo a violência do presente e do passado. Um livro essencial para que o país resgate a própria memória. Afinal, o Brasil é um país cheio de becos, de vivências fragmentadas, de história mal contadas, em que são privilegiados certos atores – e certas memórias.

sábado, dezembro 28, 2024

Os dez melhores filmes de Truffaut que vi em 2024.

Ao longo de 2024, excursionei pelo cinema de François Truffaut (1932-1984). Em outubro, completaram quarenta anos de sua morte. Morto aos 52 anos de idade (portanto, ainda muito jovem), o cineasta francês é um dos nomes mais expressivos da história do cinema. É daqueles nomes que se tornaram referência para outros bons diretores - Martin Scorcese, Brian de Palma, Francis Ford Copolla etc. No final de 2023, escolhi doze das suas mais de 30 produções, filmadas ao longo de mais de 30 anos.

Truffaut fez parte de um movimento cinematográfico surgido na França, denominado "Nouvelle Vague" ("Nova Onda"), que buscou romper com os padrões do cinema produzido até os anos 50. Ao lado de nomes como os de Jean-Luc Godard e Éric Rohmer, Truffaut foi um amante inveterado do cinema, vertendo para as telas a psicologia da modernidade. 

Mais do que qualquer característica, a "Nouvelle Vague" se destacava pela forma como se deveria contar uma história. Buscava romper com o simplismo do cinema comercial e impunha uma estética capaz de mexer com o espectador na forma como recepcionava cada produção. Para assistir aos doze filmes de Truffaut os quais escolhi, foi necessário muita atenção. Os diálogos são rápidos. Lancinantes; outros, dispersivos ou fragmentários. O enredo às vezes parece ser conduzido em direções impensadas. A noção de linearidade é afetada, o que demanda do espectador uma atenção excessiva. Essa característica sugere uma forma de retratar o aspecto veloz, transitório e de mudanças abruptas da modernidade. As mudanças sugeridas pela "Nouvelle Vague" enunciavam uma fixação pelo real em detrimento dos efeitos extraordinários tão comuns no cinema comercial. Foram colocados em evidência a luz do dia a dia, as trivialidades do cotidiano; a rua, as pessoas, o trânsito; as cores dos espaços abertos; as feições quase que naturais dos atores. A impressão que temos é a de que estamos ao lado, junto com o diretor, observando cada cena.

O que fica da "Nouvelle Vague" é a quantidade de imagens acumuladas na memória. O que conta é a experiência subjetiva do espectador. Terminei, por exemplo, de assistir, hoje, ao décimo segundo filme - "As duas inglesas e o amor" (para mim, um dos melhores filmes do diretor) e fiquei com uma impressão que não se fixa em apenas uma dimensão da obra. Nele, por exemplo, é possível observar como a noção de mudança da condição dos personagens não conduz a um final previsível, típico das produções previsíveis. Não há uma resolução. O que fica é aquela sensação de que a vida é uma obra sem acabamento e permeada pela incerteza. 

Eis a lista dos dez melhores filmes que vi do diretor francês:

1 - As duas inglesas e o amor
2 - Um só pecado
3 - Fahrenheit 451
4 - Na idade da inocência
5 - O homem que amava as mulheres
6 - Os incompreendidos
7 - Domicílio conjugal
8 - Beijos roubados
9 - Atirem no pianista
10 - O último metrô

P.S. A lista completa está aqui.

terça-feira, dezembro 24, 2024

12 livros de literatura brasileira para 2025

 

Nos últimos três ou quatro anos, tenho empreendido uma jornada pela literatura brasileira. Escolho, no início do ano, doze livros de autores nacionais para ler - um por mês. Privilegio os clássicos. Isso tem me permitido entrar em contato com muitos livros que sempre sonhei ler. Estimo bastante os escritores brasileiros. Conhecer os escritores nacionais é conhecer nossa história, nossas crenças, nossos pecados; e nossas belezas também.

Em 2024, não cheguei nem à metade dos doze livros. Finalizei apenas cinco. Distrai-me com outras leituras. Aqueles que não foram lidos este ano, migrarão para a lista de 2025. A única releitura que farei fica por conta de "Iaiá Garcia", de Machado de Assis. Li-o há bastante tempo. Preciso revisitá-lo. Lerei um novo Jorge Amado. Tenho tentado ler um Jorge por ano em ordem cronológica. Lerei mais uma obra de José Lins do Rego - dessa vez, Eurídice.  A prosa do escritor paraibano é, para mim, viciante. Após a leitura de "Eurídice", terei concluído toda obra romanesca de Zé Lins. 

Voltaremos a ler Carlos Drummond. Em 2023, tive a grata experiência de ler "A rosa do povo", um livro cuja escrita aponta para a visão pessimista do autor. Foi uma das melhores leituras que realizei aquele ano. Escolhi, dessa vez, "Claro Enigma", pois é um dos seus livros mais significativos. Voltaremos aos labirintos da escrita de Clarice Lispector. Leremos Lima Barreto, um dos seus poucos livros que ainda não li. Já Cornélio Penna e Pedro Nava não são escritores tão conhecidos do grande público. Estão restritos ao círculos acadêmicos. Preciso conhecê-los. Há ainda Cascalho, de Herberto Sales, que trata sobre o curto ciclo minerador na Chapada da Diamantina. E ficaram os calhamaços Crônica da casa assassinada e Grande Sertão: Veredas, dois dos livros mais importantes, no século XX, escritos no Brasil.

Eis a lista:

  • A menina morta - Cornélio Penna
  • A maçã no escuro - Clarice Lispector
  • Grande Sertão: Veredas - João Guimarães Rosa
  • Baú de ossos - Pedro Nava
  • Crônica da casa assassinada - Lúcio Cardoso
  • Cascalho - Herberto Sales
  • Numa e a Ninfa - Lima Barreto
  • Claro Enigma - Carlos Drummond de Andrade
  • Iaiá Garcia - Machado de Assis
  • A alma encantadora das ruas - João do Rio
  • Eurídice - José Lins do Rego
  • Jubiabá - Jorge Amado

segunda-feira, dezembro 16, 2024

A descoberta de si e o proibido, segundo Alba de Cespedes

 

“Antes, eu esquecia rápido o que acontecia em casa; mas agora, desde que comecei a anotar os eventos cotidianos, mantenho-os na memória e tento compreender por que se produziram”.

Valeria, personagem do livro “Caderno proibido”.

 

 Alba de Céspedes foi uma importante e arrojada escritora de família ítalo-cubana. Sua mãe era italiana, já o pai, de quem herdou o sobrenome de Céspedes, era cubano. Diplomata de profissão, morou em vários locais da Europa, o que permitiu a Alba um olhar privilegiado sobre a situação do seu tempo nas primeiras décadas do século XX. De família economicamente privilegiada e de posicionamento progressista, de Céspedes, desde muito cedo, foi uma observadora privilegiada. Chegou a ser presa em 1935 por sua militância antifascista.  

Ao longo de sua prodigiosa carreira, de Céspedes foi roteirista de cinema, poetisa, dramaturga, romancista e, sobretudo, uma mulher à frente do seu tempo. A escritora é reputada como uma das mais importantes feministas do século XX na Itália. Essa sua posição que ajudou as a mulheres a refletirem a própria condição, foi demasiado necessária do ponto de vista político.

Em “Caderno Proibido”, encontramos um dos seus mais conhecidos e bem escritos textos. Do ponto de vista da estrutura narrativa, o mote parece simples, sem maiores sofisticações. Um certo dia, uma mulher de pouco mais de quarenta anos, portanto, ainda muito jovem, mãe de dois filhos, casada, vai a um estabelecimento comercial a fim de comprar cigarros para o marido. Era domingo. Inopinadamente, ela decide comprar um diário. Era proibido comprar um bem daquele em pleno domingo. Conseguiu convencer o vendedor arredio que a aconselhou a esconder o caderno “embaixo do casaco”.

Alba de Cespedes

É, a partir dessa ação aparentemente banal que descobrimos quais são os dramas, fatos e contradições que existem no interior da personagem. Narrado em primeira pessoa – afinal, é assim que se redige um diário -, o texto é eloquente em seu movimento subjetivo.  O diário, geralmente um portador de texto que é costurado na adolescência, no romance, é escrito por uma mulher madura, de 43 anos de idade. Ela o escreve em um período de aproximadamente seis meses. Das primeiras anotações até as últimas, pode ser observado um movimento de transformação – no princípio tímido e, consistente, à medida que certa disposição interior ocorre. O diário funciona como um dispositivo que permite a personagem entrar em contato consigo mesma.

Tendo quarenta nos anos 50, em uma Itália dilacerada pela experiência do pós-guerra, Valeria carrega consigo a formatação de um tipo de consciência histórica. Sua filha Mirella – de vinte anos – é a personagem que consegue elaborar as reflexões mais duras e realísticas com a mãe. Riccardo, o filho que Valeria trata com máxima tolerância, reproduz o modelo masculino, criado para ter os privilégios que a sua condição de homem permite. Michele, o companheiro de Valeria, é um tipo afetivamente desidratado por quem Valeria já não nutre os mais cálidos sentimentos. Apenas um respeito vazio e obrigação tácita adquirida pelo dever imposto pela relação monogâmica. A relação dos dois recebe as primeiras cintilações da mornidão. Michele a chama inadequadamente de “mamãe”. E ela atende os requisitos da “mamãe” de todos. Exerce aquela condição própria da mulher pequeno-burguesa. Na Itália pós-guerra, é obrigada a trabalhar a fim de engrossar o orçamento familiar. Envolta pela rotina e pelo trabalho, da preocupação com os afazeres domésticos, Valeria percebe o quanto é despersonalizada da sua condição de mulher; ou pelo menos procurar entender aquilo que lhe é desconhecido.

Valeria experimenta uma contradição, pois descobre que sua jovem filha está tendo um caso com um homem casado. Isso a incomoda. Cria um cenário para disputas e conversas desgastantes com filha. Mirella diz que a pessoa com que está se relacionando, encontra-se em processo de divórcio. Por sua vez, após muito refletir, Valeria vê-se enleada por uma paixão com o seu chefe. Ela gravita entre os deveres de uma boa esposa; de uma dona de casa ciosa pela sua condição e a experiência fagueira da paixão, experimentada com Diego, seu chefe; um homem rico e afetuoso.

Valeria para se conhecer, para desmantelar o papel social que lhe foi atribuído, precisa experimentar o proibido. Escreve de forma clandestina, geralmente, “nos pontos-cegos”, ou seja, quando fica sozinha ou tarde da noite, quando a família vai dormir. Para viver uma sexualidade diferente, ela se relaciona com outro homem, mesmo estando presa a um relacionamento de mais de vinte anos.  O diário permite que a personagem venha a se dá conta da própria subjetividade. Esse movimento ocorre após a observância da própria transformação. Na parte final da obra, ela afirma como se já estivesse plena e consciente da sua obra realizada: “...todas mulheres escondem um caderno negro, um diário proibido”. Essa afirmação sugere que, no fundo, as mulheres possuem um conhecimento de sua própria condição, o que é questionável pela experiência.

“Caderno proibido” é uma obra desafiadora e de bom gosto. Sua escrita é viciante. Há quem afirme que foram os textos de Alba de Céspedes os responsáveis pela escrita ácida de Elena Ferrante. Entende-se o porquê. De Céspedes foi uma escritora poderosa, de um estilo caudaloso, que muito diz e insinua a respeito da condição da mulher do seu tempo; das mulheres que guardam diários e que experimentam o proibido com a finalidade de realizarem autodescobertas.  

quarta-feira, novembro 27, 2024

A história da confusão das línguas em Gênesis 11

 

Uma representação da torre. 

                No livro bíblico de Gênesis, há muitas passagens em que se percebe a existência de etiologias. Entendem-se as etiologias como mitos de fundação. Esses mitos existem com o intuito de justificar a existência do mundo ou de uma estrutura social. Por exemplo, os primeiros capítulos do Gênesis são manifestas etiologias. Observa-se, por exemplo, a descrição que o autor – ou que os autores -  dessa porção do texto realiza(m) ao descrever(em) a forma como supostamente Javé teria criado o mundo numa operação ex nihilo.  A ideia de mito fundador pode ser observada na forma como ocorre a suposta criação do mundo – os mares, as estrelas, o céu, a terra, os animais, etc. O movimento de como as ações são narradas é uma forma de explicação que justifica a realidade e tudo o que existe.

                No capítulo 11.1-9, do mesmo livro de Gênesis, há a descrição do conhecido episódio da Torre de Babel. Ao longo do tempo, já ocorreram inúmeras tentativas de explicação dessa passagem. Nessa descrição, é possível observar outra etiologia que procura explicar a existência das variedades linguísticas existentes no mundo. Certamente, o autor dessa parte do Pentateuco, ao olhar para a polifonia de vozes existentes ao redor de Israel, deve ter se baseado em alguma lenda para produzir o texto.

                O texto afirma que, após terem sobrevivido ao Dilúvio (outra etiologia), alguns homens marcharam para o leste e se estabeleceram na terra de Senaar (v.2)[1]. Em seguida, puseram-se a construir uma “cidade e uma torre cujo ápice penetre os céus” (v.3). O texto, logo em seguida, afirma o seguinte: “Ora, Iahweh desceu para ver a cidade e a torre que os homens tinham construído”. (v.5). O uso da partícula expletiva de realce “ora”, serve para introduzir a figura da divindade judaica na história. Funciona do ponto de vista retórico como a segunda parte do raciocínio que justifica o motivo pelo qual algo passou a ser de determinada forma. Iahweh “desce” de sua morada para realizar duas ações: (1) ver a cidade; e (2) a torre que os homens tinham construído. É importante dizer que a cidade e a torre já estavam construídas, mas, em algum momento, teria reprovado os eventos que ocorriam naquela inventiva comunidade. Seu olhar moralizante condena a ousadia dos homens. Ora, por que os homens não poderiam construir a cidade e a erguer a torre?

O autor dessa porção do texto bíblico aproxima Iahweh das divindades dos povos vizinhos aos israelitas. A ação de “descer” aproxima a divindade judaica aos deuses que habitavam o Olimpo, por exemplo. Zeus de tempos em tempos descia da sua morada para interferir ou mudar determinado aspecto da realidade. Segundo alguns estudiosos, essa é uma evidência da fonte javista[2]. Os registros da fonte javista ou fonte J, sugerem Iahweh como uma divindade antropomórfica. Por exemplo, em Gn 3.8 há a afirmação de que “Iahweh Deus (...) passeava no jardim à brisa do dia”, uma evidente antropormorfização da divindade.  Ao longo do Velho Testamento, principalmente nos livros proféticos, a figura de Iahweh vai ganhando aspectos transcendentes e perdendo a característica antropomórfica.

No versículo seguinte, após ter constatado os empreendimentos humanos, Iahweh afirma que nada seria “irrealizável” para os homens. Percebe uma potência incontrolável na humanidade. Não gosta do que vê. A Nova Tradução Internacional (NVI) está assim traduzida na parte B do versículo 6: “Em breve nada poderá impedir o que planejam fazer”.  Ou seja, depreende-se que nem mesmo Javé seria capaz de controlar essa expansão de poder.

A partir dessa constatação, a divindade suprema do povo judeu decidiu “confundir a linguagem” a fim de que aqueles que empreendiam o projeto desistissem da ação. Curiosamente, no versículo 7 – tanto na NVI quanto na Bíblia de Jerusalém (duas excelentes traduções) – os verbos que exprimem a ação de Javé  estão no plural, deixando implícito que a ação que baratinou a construção foi feita em concílio, ou seja, com mais de uma divindade[3]. Esse é um fenômeno que se repete em passagens do Gênesis. É conhecida a passagem dos capítulos iniciais do livro, em que pode ser lido: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”. Pode ser percebido ainda que a Bíblia de Jerusalém mostra que Iahweh – no versículo 7 - utiliza praticamente os mesmos verbos usados pelos homens no versículo[4]. Há uma ação contrária àquela realizada pelos homens. Enquanto os homens procuram construir, Iahweh procura des-construir, colocar freios à ação humana.

Neste quesito, aponta-se outra característica da fonte javista, ou seja, a procura de distinção do homem e da divindade. A fonte J procura impor limite entre a falibilidade humana e a grandeza de Iahweh, que deve assinalar sua posição como divindade suprema acima do mundo. Ele governa e, se necessário, andará no meio dos homens para mostrar que eles não prevalecem.

Iahweh censura o empreendimento realizado pelos homens. A multiplicação de línguas teria se constituído em um fator de impedimento para que o projeto de expansão da “cidade” e da “torre” continuasse o seu curso. Javé põe freios à ousadia humana. Sua ação é deliberadamente melindrosa; sua interferência, ressentida.  Vale mencionar que os homens que decidiram construir a cidade e a torre faziam parte da geração pós-diluviana. Há ainda uma desconfiança de Iahweh nesses homens. Certamente, havia o entendimento de que a maldade deles era um fator que gerava insatisfação em Iahweh. Reside neste fato outra característica da fonte javista – ou seja, a descrição do crescimento da maldade entre os homens. Iahweh teria feito os homens de forma perfeita, mas eles foram alcançando escalas de ensandecimento cada vez mais acentuadas.

Representação de um zigurate. 

Nos versículos finais que retratam o mito, Iahweh “dispersa” aqueles obstinados homens “por toda a face da terra”. Aquele incidente ficou conhecido como “Babel”. Os judeus se reportavam a Babilônia como Babel, cujo significado é “confusão” ou “mistura”. A escrita dessa etiologia, certamente, procurava, a partir de uma lenda existente, fazer um revisionismo histórico, criando um mito fundador. Alguns estudiosos, indicam que a fonte javista foi redigida nos séculos VI e V a.C.

É importante dizer ainda que essa revisão histórica procurava obumbrar a grandiosidade da civilização apontada no texto. Como indicam as pistas do texto, é possível que os substratos da referência histórica remetam à Babilônia. Afirmar a supremacia de Iahweh sobre essa “torre” e essa “cidade” sugere que há uma animosidade contra o crescimento e a pujança daquela civilização. Alguns intérpretes apontam que, quando o texto fala de “torre”, talvez, estejam a sugerir os famosos zigurates. Essas construções eram comuns entre os assírios, babilônicos e sumérios. Elas possuíam a forma de uma pirâmide terraplanada e ostentavam uma função religiosa. Aos serem construídos, buscava-se colocar os homens mais próximos das divindades. Além da função religiosa, serviam de biblioteca, espaço de observação das estrelas e local para guardar grãos, o que indica uma importante função para aquelas civilizações. O registro dos primeiros zigurates remontam dois milênios antes de Cristo.

Em suma, ao escreverem o mito fundador da conhecida história da confusão das línguas, buscava-se produzir uma reinterpretação da história: (1) para rebaixar a grandiosidade da civilização babilônica; (2) para delimitar a soberania de Iahweh como divindade suprema; (3) para desacreditar a estrutura religiosa dos povos vizinhos; (4) para criar uma narrativa com objetivos doutrinários, com finalidade de formação identitária. Ou seja, e, a partir disso, neutralizar o reconhecimento da grandiosidade das outras nações vizinhas a Israel.

 

[1] Realizei a minha leitura na Bíblia de Jerusalém, por isso emprego o termo “Iahweh” conforme aprece na tradução. 

[2] A teoria das fontes ou críticas das fontes é uma hipótese desenvolvida por Julius Welhausen. Segundo esse estudioso alemão, o Pentateuco é o resultado da estruturação de quatro fontes principais: a eloísta, a javista, a sacerdotal e deuteronomista.

[3] (1) A Bíblia de Jesuralém diz: “Vinde! Desçamos! Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros”.  (2) A NVI afirma: “Venham, desçamos e confundamos a língua que falam, para que não entendam mais uns aos outros".

[4] No versículo 4 – os homens afirmam: “Vinde! Construamos uma cidade e uma torre cujo ápice penetre os céus!” No versículo 7 – Iahweh diz: “Vinde! Desçamos! Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam”.

quarta-feira, novembro 20, 2024

Uma crônica de Machado de Assis que cai muito bem neste dia

O texto a seguir é parte de uma crônica de Machado de Assis, publicada, em 19 de maio de 1888. A Abolição se dera 6 dias antes daquele mesmo mês. No texto, Machado desfere golpes de fina ironia. O texto é repleto de camadas que escancara como se estrutura a sociabilidade brasileira. Reflete sobre a sociedade de relações verticalizadas e sem a devida consideração humana a respeito de quem é o outro. Serve como alegoria para explicar como "os de cima" - para usar uma expressão de Florestan Fernandes - tratam aqueles que estão embaixo. Apesar de haver uma consolidação de um "Dia da Consciência Negra", ainda há muito para se caminhar, muito para se refletir, muito a se fazer.

 Segue o texto:


"Abolição

 
[...]
No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
– Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que…
– Oh! meu senhô! fico.
– …Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho dêste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos…
– Artura não qué dizê nada, não, senhô…
– Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
– Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Êle continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe bêsta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas tôdas que êle recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a tôda a gente que dêle teve notícia [...]."

segunda-feira, setembro 30, 2024

Uma conversa em um grupo do WhatsApp.

 


Participo de um grupo de WhatsApp com dois outros colegas de trabalho. Debatemos questões políticas quase todos os dias. Um dos membros deles possui posições assumidamente antipetistas e antilulistas. Acabei respondendo algo assim. 

Essa notícia veiculada pelo Metrópoles é daquelas que fermentam a indignação da classe média contra o Lula. Assolado pela raiva, pela indignação, pela incapacidade de reconhecer ou assumir qualquer medida positiva do governo, resta ao indivíduo iracundo de classe média, mover turbilhões de indignação contra o presidente perdulário.

Isso me faz lembrar aquela passagem do livro “Dom Casmurro”, do Machado de Assis. Diz o narrador que, após fazer uma pergunta para um verme gordo que encontrou em um texto, obteve a seguinte resposta:

“- Meu senhor - respondeu-me um longo verme gordo - nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos”.

Esse texto é uma metáfora da disposição que existe contra o Lula. Não se tem absolutamente noção sobre os fundamentos do mundo real. O que existe é apenas a raiva, a indisposição contra o governo. Apenas se odeia. Caso esse tipo de notícia ocorresse com outro nome, não haveria problemas. O problema é que é o Lula. Um presidente nordestino, operário, sindicalista, de origem popular. Sua imagem está sempre associada ao “não pode”, ao “não deveria”. Ou será que, em um Palácio Presidencial, deveriam apenas servir costela ou acém; ou apenas moela de frango? Ou que não há cozinheiros versados nas magias da culinária refinada em uma cozinha de Palácio Presidencial?

São apenas sensaborias argumentativas o que nos sugere essa notícia. Serve apenas para gerar ódio seletivo. Pensa o indignado indivíduo de classe média, assentado sobre a raiva, que se coisas como essas forem abolidas, o mundo será um local mais justo e, como diz o livro de Gênesis, “o espírito de deus vai pairar sobre a face do abismo”.

Meu caro #####, sei que você discorda de tudo que escrevi. Mas é o que penso. Pode dizer que incorri em um “ad hominem”.

quarta-feira, julho 31, 2024

Richard Wagner: música, genialidade e controvérsias

 

[Wagner era um] “gnomo fungador da Saxônia com talento bombástico e caráter desprezível”

Thomas Mann, sobre o compositor alemão.

 



No início da semana, terminei a audição da famosa tetralogia do Anel, do compositor alemão Richard Wagner. Os quatro trabalhos somam mais de quinze horas de música, teatro e uma exigente performance para os músicos. Os quatro trabalhos – “O ouro do Reno”, “As Valquírias”, “Siegfried” e “O crepúsculo dos deuses” são trabalhos complexos e que revelam as enormes aspirações do compositor. “O anel do Nibelungo” pode ser colocado como uma das produções mais rigorosas já produzidas por um ser humano. Por trás dessa grandiosa obra, nota-se o homem Richard Wagner.

Para completar esse quadro, li uma excelente reportagem no jornal alemão DW, publicada há dois dias que tratava sobre o homem e o mito Richard Wagner. Ao longo de sua vida – e até hoje -, o compositor construiu, ao mesmo tempo, um exército de admiradores quase religiosos e um outro exército de críticos ao seu trabalho e à sua personalidade. Ou seja, não há como negligenciar a condição de polemista do alemão.

Primeiramente, é importante abordar o caráter político do alemão. Há por trás de sua personalidade manifestações preconceituosas e oportunistas. Em vida, Wagner foi o defensor de um resgate do verdadeiro espírito alemão. Seu antissemitismo é um dos aspectos mais asquerosos de sua biografia. Certamente, ele fortaleceu, no final do século XIX, muitas das aversões que foram direcionadas aos judeus. Outro aspecto nebuloso é a ligação de seus descendentes com a ideologia de Hitler. Não se pode dizer que Wagner inaugurou o nazismo. Não existe o menor fundamento histórico para isso, mas pode-se afirmar que a música do compositor foi usada como estética para a pedagogia do 3º Reich. Quando se observam as imagens dos soldados perfilados, da regularidade da marcha, dos uniformes, as multidões perfiladas, tudo cria uma frugalidade e um rigor operístico. Certamente, o entusiasmo nacionalista do compositor criou essa identificação. A personalidade de Wagner passou a ser admirada e endeusada pelos principais líderes do regime nazista.

Hitler, desde a juventude, havia se apaixonado pela música do alemão. Fazia incursões anuais para Bayreuth, pequena cidade do interior da Alemanha, onde foi construído sob o patrocínio de Luís II, da Baviera, o famoso teatro para que as óperas do compositor fossem encenadas. Todos os anos, 11 de suas principais óperas são encenadas nos meses de julho e agosto. Isso tem sido feito desde 1876. A fila para conseguir um ingresso é altamente disputada, chegando a 8 ou 10 anos para se conseguir um ingresso.

Em segundo lugar, é importante dizer que a música de Wagner não deve ser negligenciada. O drama é uma condição inexpugnável de sua música. Ela é elevada a níveis altíssimos. Algumas de suas óperas possuem quase quatro horas de uma apresentação intensa em que não é possível baixar o nível. Ou seja, um verdadeiro desafio para aqueles que desejam representá-la. A obra do compositor procura exaltar um ideal de grandiosidade e pureza. Sua música é capaz de provocar fortes emoções. Há nela elementos fantasiosos e uma atmosfera quase religiosa.

O “talento bombástico” ao qual se refere Mann diz respeito, certamente, ao magnetismo que a música do alemão promove. Bruckner o chamava “mestre dos mestres”. A admiração do compositor austríaco era das mais exageradas. Ele viajou algumas vezes da Áustria para a Alemanha para acompanhar o famoso Festival na cidade de Bayreuth. Suas 11 sinfonias estão impregnadas de Wagner. Dedicou a Terceira Sinfonia, cujo nome “Wagner” faz uma referência explícita à admiração que tinha pelo grande operista.

Wagner insere uma nova página para a música moderna. Suas inovações podem ser percebidas, por exemplo, na relação que ele estabelece da voz com a força da massa sonora da orquestra. Em Wagner, não somente os cantores contam a história. A orquestra também o faz. Notam-se por meio de insinuações dos instrumentos, a adequação entre o que está sendo cantado e o que está sendo reproduzido pelos músicos da orquestra. Nada é gratuito. Tudo deve ser observado, pois tudo compreende o drama. Os leitmotivs também foram uma técnica desenvolvida por ele como espécie de metalinguagem para que fossem percebidos insinuações do tema do trabalho que é representado. 

Ao ouvir as quatro óperas (uma por semana) de “O anel do Nibelungo”, pude absorver um pouco da atmosfera grandiosa e megalomaníaca do compositor. Em um primeiro momento, a impressão que nos passa é de que estamos diante de lendas ultrapassadas sobre mitos germânicos. Não. Wagner depositou ali os dramas humanos – a força, a honra, a coragem, a verdade, a mentira e tudo aquilo que envolve o desafio que é ser humano. O homem Wagner está escondido por trás de camadas polêmicas de controvérsias, mas sua música é grande, sublime, de força avassaladora. E isso é incontestável.

terça-feira, julho 30, 2024

"Esaú e Jacó", de Machado de Assis - algumas observações


“Paulo gostava mais de conversa que de piano; Flora conversava. Pedro ia mais com piano que com a conversa, Flora tocava. Ou então fazia ambas as coisas, e tocava falando, soltava a rédea aos dedos e à língua”.

Capítulo XXXV

“Todos os contrastes estão no homem”.

Capítulo XXXV

Terminada a releitura de “Esaú e Jacó”, restou a impressão de que essa é uma das obras que melhor desvelam o seu autor. Revela um escritor maduro, que oscila entre a sátira, o niilismo e um estoicismo recolhido, personificado na pessoa do personagem do Conselheiro Aires. Vale lembrar que o ataráxico Aires seria o personagem principal que levaria o nome do último romance escrito por Machado – “Memorial de Aires”. No de caso de “Esaú e Jacó”, o escrito emprega o pessimismo e o faz por meio daquilo que ele sabia fazer melhor – a ironia fina, escorregadia, urdida em uma arquitetura textual primorosa. 

O livro foi publicado no ano de 1904, mesmo ano em que faleceu a sua inseparável companheira de 35 anos – Carolina Xavier. Machado contava com 65 anos de idade. Era um sujeito experimentado e habilidoso. Havia acumulado uma carreira de muito trabalho e consequente sucesso. Até aquele momento, escrevera obras que estão colocadas no panteão definitivo das produções literárias nacionais – “Memórias Póstumas”, “Dom Casmurro”, “Quincas Borba”, além de inauditos contos como “O alienista”, “A igreja do diabo”, “O espelho” e “A teoria do medalhão” entre outros. O seu realismo havia se escancarado, como lhe era comum; todavia, pode-se notar um ceticismo medido e mais acentuado em “Esaú e Jacó”.

As camadas de ironia do texto construído em torno dos antípodas Paulo e Pedro, encobrem, numa camada profunda, o entendimento de que a realidade pode ser diversa; que a história dos homens pode se alternar; que o elemento preponderante da realidade é a impermanência. Na parte final da obra, o narrador afirma: “Enfim, a morte chega, por muito que se demore, e arranca a pessoa ao pranto ou ao silêncio”. Em um dos capítulos da obra, naquelas incursões típicas do narrador que dialoga com o leitor (tão próprias de Machado de Assis), encontramos: “Não envelheças, amiga minha, por mais que os anos te convidem a deixar a primavera; quando muito aceita o estio”. Verifica-se que há uma acentuada preocupação com a questão do “tempo”. Ele aparece como motivo de reflexões ou envolve a vida dos personagens, traduzindo em acontecimentos em que se nota o quanto as personagens são atravessadas por esses efeitos. Ninguém pode se conduzir pela existência, simplesmente, ignorando-o; ou desconsiderando os seus sinais.

Machado de Assis

Fato curioso reside – de início – no nome da obra. Esaú e Jacó são os nomes dos dois filhos de Isaque – e este, filho de Abraão, de acordo com o texto bíblico. Os dois irmãos são criados de forma distinta. Esaú é caçador e tem a predileção do pai; Jacó, por sua vez, é benquisto pela sua mãe Rebeca. Os dois são concebidos em disputa. Esaú nasce primeiro, mas Jacó segura-lhe o calcanhar. O nome Jacó deriva de uma expressão hebraica que significa “ele agarra o calcanhar” e serve para designar uma pessoa de comportamento enganoso. Esaú é o mais velho e, portanto, todas as prerrogativas jurídicas da herança caíam sobre ele.  Jacó e sua mãe conseguiram usar um estratagema para fazer com que o irmão mais velho trocasse o direito de primogenitura por um prato de lentilha. Mais tarde, todos os efeitos da primogenitura recaem no colo de Jacó e ele passa a ser chamado de Israel. Esse confronto manifesto é explicado por meio de uma profecia dirigida a Rebeca pelo próprio Javé: “O mais velho servirá ao mais novo”. Os dois fundariam dois povos poderosos, mas essas nações seriam inimigas.

Apesar desse pano de fundo, os dois personagens de “Esaú e Jacó” não são chamados dessa forma. Um se chama Paulo e, outro, Pedro. Aquele era um entusiasta republicano e este um calejado monarquista. São completamente distintos em várias questões. Parecem existir para se confrontarem. Paulo e Pedro também são nomes extraídos Bíblia. Todavia, são nomes ligados à fundação do cristianismo. Enquanto Pedro estava ligado à Igreja de Jerusalém, Paulo é o apóstolo onipresente que estrutura um discurso e o leva aos confins do Império Romano. Ele é o pregador da diáspora, seu “ethos” é o da integração, do universalismo, da difusão plural, pois pregava aos romanos, gregos e demais povos da Antiguidade. Dominava a língua grega, a língua da cultura sistematizada da época. Além disso, é possível que soubesse o latim, a língua do Império e responsável por organizar as questões políticas e militares. Pedro, por sua vez, estava circunscrito ao ambiente judaico de Jerusalém e dominava, possivelmente, o aramaico. Nota-se, assim, que Machado genialmente une Antigo e Velho Testamento para construir o enredo da obra. Estica-se um fio que se apropria de elementos judaicos e elementos cristãos.

O Rio de Janeiro, em 1889, ano da Proclamação da República
 

Outro importante aspecto diz respeito ao momento histórico que a obra retrata. Nesse sentido, é um importante texto para estabelecer conexões com a fundação da chamada República Velha. Lima Barreto também a retrataria, mais tarde, em “O triste fim de Policarpo Quaresma”. Pedro torna-se médico; forma-se no Rio de Janeiro, sede da capital do Império. Paulo, torna-se advogado; estuda em São Paulo, um dos centros irradiadores das ideias republicanas. Vale mencionar que em São Paulo fica a prestigiada Faculdade de Direito do Largo do São Francisco. Lá estudaram boa parte dos intelectuais que alimentaram a chama do republicanismo no final do século XIX.

A única questão que une os dois personagens é a paixão pela linda Flora, que ora se decide por um; ora se inclina para outro, sem tomar qualquer decisão. Observa-se que ela morre sem se decidir nem por um nem por outro. Em “Esaú e Jacó” o jogo muda, ganha novos contornos, pois a vida é repleta do efêmero. O ser humano também o é. Em tempos de mudanças, o que fica é a força da falta de estabilidade. Para algumas pessoas, essa característica gera inseguranças. No geral, as pessoas não lidam muito bem com a impermanência. Todavia, a realidade se constitui pela transformação, pela contradição.

A obra faz referência a alguns dos eventos que foram responsáveis pela organização política e econômica do país no século XX. Um dos principais eventos foi a Proclamação da República, arrancando o país da condição de Império, o último das Américas. Menciona-se ainda a Abolição da escravatura, um dos eventos que mudaria em definitivo a relação do capital com as forças produtivas. Além dessas questões, a mudança do Império para República deflagrou uma crise econômica denominada de Encilhamento. 

Sendo assim, observa-se que Machado se utiliza de personagens complexos para realizar uma análise das contradições existentes no ser humano, bem como refletir sobre os eventos políticos do seu tempo. Machado lança mão da ambiguidade para apontar que a vida pode ser conduzida por mares diversos. Tanto Paulo quanto Pedro são faces da mesma verdade, que é a vida. As indecisões presentes em Flora também fazem parte da existência. As paixões exacerbadas apenas fazem sofrer, pois como diz o próprio narrador “todos os contrastes estão no homem”.