segunda-feira, março 10, 2025

"O primo Basílio", de Eça de Queiroz.


Terminei a leitura de o “O primo Basílio”, de Eça de Queiroz. Confesso que estava precisando ler algo como o texto do escritor português. O livro é uma radiografia sobre os costumes da época em que foi escrito. Dentro das produções do autor português, o livro foi o segundo escrito pelo autor. O primeiro foi “O crime do padre Amaro”, de 1876. “O primo Basílio” é do ano de 1878.

Eça não é original. É possível observar que há forte influência do romance francês. Flaubert dita-lhe o esquema. Zola também é uma outra força que usa para criar os seus personagens. Não poderia ser diferente. Essas forças estéticas estão presentes em boa parte das produções romanescas do final do século XIX. Com Eça não poderia ser diferente. Ele procura ser um crítico, um dissecador dos costumes morais. Procura desnudar os vícios ocultos da burguesia e da pequena burguesia lisboeta. Nesse sentido, pode-se afirmar que ele senta à mesa e olha a paisagem como um observador cientificamente atento. O romance traz um narrador onisciente e em terceira pessoa.

A história possui um esquema. E isso pode ser observado no primeiro capítulo. Ele procura apresentar ao leitor quem são as personagens, os ideais, os vícios e os maneirismos. De alguma forma, a tese se desenha ali. Como em outros escritores realistas, Eça aborda o adultério e com isso procura colocar em destaque o papel da mulher. Flaubert já fizera isso – em 1856 – com Madame Bovary, um dos casos de adultério mais famosos da literatura. Nesse sentido, não há originalidade no romance eciano. Ele transporta para Portugal a estética realista a fim de expor provincianismo lisboeta, bem como suas doces contradições. O realismo propunha-se a isso.

O escritor realista é objetivo. Era sua intenção retratar da maneira mais fiel os vícios de determinada sociedade. Ele pode fazer isso de maneira sutil, realizando insinuações, como bem fez Machado de Assis aqui no Brasil. Dom Casmurro é um exemplo disso. Não há descrições de adultério, mas há a tese do adultério, há a rebaixada condição da mulher. O realismo de Eça segue para outra direção. Ele se apropria de elementos naturalistas para descrever certas passagens do romance. O objetivo dessa estratégia é inserir o leitor em uma atmosfera crua, em que a realidade se mostra da maneira mais eficaz. Com o realismo, escuta-se que, quando se está doente, é necessário que se faça uma cirurgia. Com o naturalismo, o interlocutor é levado ao próprio local da cirurgia a fim de que ela seja explicitamente constatada. Assim, O primo Basílio é um romance realista, mas repleto de passagens de crueza naturalista.

A história aborda a traição de Luísa. Bonita, ingênua, Luísa é o protótipo da personagem romântica. Ela acredita na paixão, nos arroubos, nas promessas feitas pelo indivíduo apaixonado, no caso, seu primo denominado Basílio. Jorge, esposo de Luísa, engenheiro bem-sucedido, viaja a trabalho. Passa largos meses fora de casa. Nesse ínterim, Luísa recebe a visita de seu primo recém-chegado do Brasil, onde enriquecera. Voltava luzidio. É evidente o seu desejo de possuir Luísa com quem já tivera um namorico em tempos passados. O reencontro fê-los reavivar o estampido da paixão. Luísa entrega-se completamente a ele. Trocam cartas apaixonadas.

Algumas dessas cartas são interceptadas por Juliana, uma das personagens que melhor demonstram um aprofundamento psicológico por parte do autor. O narrador procura nesse ponto torná-la uma opositora. Sua posição é de firme contraste, de ódio e ressentimento contra a patroa. Juliana representa os pequenos humilhados. Sua intenção com a perpetrada chantagem contra a patroa é conseguir valores financeiros que pudessem dar a ela uma certa tranquilidade na velhice. Inicia-se um jogo complicado entre as duas personagens.

Basílio, por sua vez, é o dândi vazio, oportunista. Assume o papel do canalha, do embusteiro. Ele responsabiliza Luísa pelo fato de a empregada ter furtado as correspondências. Sua preocupação é em poder usufruir das belezas do corpo de Luísa. Não seguirei com desfecho da relação entre os dois para que não sejam entregues os desfechos da obra.

Há outros personagens relevantes e marcantes que aparecem como fatos sociais. Um deles é conselheiro Acácio. Vale mencionar que conselheiro era um título ofertado pela nobreza portuguesa. Ele recebeu tal encômio pelos serviços prestados ao Estado. Acácio é a representação do banal, do inexpressivo. Veste-se de uma pompa sem conteúdo. Gosta das frases eloquentes, mas de pouco valor. É hipócrita em seu moralismo exemplar. Julião, o estudante de medicina, que procurava um lugar ao sol. É invejoso e interesseiro. Leopoldina é a adúltera assumida e, por isso, recriminada; possui uma má reputação.

Além disso, é importante refletir sobre a condição da mulher no século XIX a partir das lentes do autor português. O romance faz-nos refletir sobre como o casamento funcionava como um excelente negócio para os homens. Observe-se que, na obra, Jorge empreende uma relação extraconjugal, no período em que se encontrava fora de casa, a trabalhar no Alentejo. Todavia, ele passa desapercebido. Não faz parte do debate. O homem possui quase que um direito natural quando realiza essa incursão fora do casamento. Ele é compreensivelmente justificado. Luísa, por sua vez, é a figura que sofre as agruras da prisão psicológica. Recai sobre ela todo o peso das cobranças sociais.

Luísa é uma personagem frágil, sonhadora, sentimental; ela encarna o padrão feminino da mulher que esperava, quando jovem, juntar-se ao seu homem e experimentar os idílios somente encontrados nos romances de cavalaria. Percebe-se no romance que Luísa é uma grande leitora do escritor Walter Scott. O escritor inglês ficou famoso pelos romances ambientados na Idade Média, repletos de ideais heroicos. Afastadas da vida pública, da vida produtiva, do comércio, da cultura, da vida política, as mulheres eram ensinadas – desde cedo – a esperarem pelo “príncipe encantado”; ou seja, pela figura imarcescível que a conduziria ao ideal paraíso da felicidade.

Basílio desperta a paixão em Luísa pelo fato de ter acendido esses sentimentos de que ela era a mulher mais perfeita. O ludibrio a abocanhou por tudo de doce que ouviu do primo mau-caráter. Assim, Eça constrói personagens femininas repletas das estereotipias típicas do século XIX. As personagens femininas – no geral – carregam consigo uma disposição moral questionável e mobilizada a partir daquilo que esperavam dela e do papel social que passam a ocupar – Luísa é a adúltera; Juliana é a figura magra, feia, ossuda, chantagista, ambiciosa e que nunca se casara; Leopoldina é a adúltera e pervertida; D. Felicidade vive à cata de um casamento aos cinquenta anos, o que demonstra, do ponto de vista moral e social, uma perversão digna de ser reprovada.

O romance demonstra, na pessoa de Luísa, alguém que não se rebela. Eça mirou para os costumes da burguesia lisboeta, mas quem pagou um altíssimo preço foi Luísa. Ela morre de uma “febre mental”. A personagem é atravessa pelo remorso. Em “O primo Basílio”, os costumes de uma sociedade caduca e contraditória são expostos. Todos os personagens padecem; mas, as personagens femininas padecem mais que os outros.

quarta-feira, março 05, 2025

De que são feitos os dias? | Cecília Meireles

De que são feitos os dias?
– De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
– do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças…

 

Acredito que este seja um dos poemas que mais concentram o mistério de que é feita a vida. Cecília consegue criar paralelos, oscilações, fluxos antitéticos, que englobam o conteúdo da existência. Camus diz em "O mito de Sísifo" que só 'vive quem toma consciência do absurdo'. Sim. Vive quem consegue lidar com o absurdo das perdas proporcionadas pelo tempo; que consegue administrar as "vagarosas saudades" e as "silenciosas lembranças"; que se escancara - incompreensível - diante de si.

A existência só se torna plena para quem reconhece ser um vulcão gerador de "mágoas sombrias", mas que é capaz de "pequenos lampejos", de "vagas felicidades" e de "inatuais esperanças". Somos feitos de contradições, de movimentos inconscientes, gestados da cumplicidade daquilo que, muitas vezes, não controlamos e não sabemos da sua textura. A vida absurda é feita "de loucuras", "de crimes", "de pecados", "de glórias", de fracassos, de avanços... e retrocessos. Somos feitos "de medo". Misturamos muitas substâncias em nosso ser. Distraímo-nos a maior parte do tempo. Dentro dessa realidade "vivemos", avançamos, "choramos" com as resoluções desencontradas e, com isso, forjamos "sinistras alianças".



domingo, março 02, 2025

"Ainda estou aqui" - livro e filme

Li em janeiro "Ainda estou aqui", do escritor Marcelo Rubens Paiva. O livro inspirou o filme de Walter Salles. A leitura do livro se deu de maneira intensa, sem que pudesse desgrudar do seu texto. Escrito com forte sabor jornalístico, a história produz emoções variadas. Aos poucos, somos puxados para testemunharmos as particularidades daquela família de classe média  - tão comum, tão feliz - moradora do Leblon, um dos bairros mais famosos do Rio de Janeiro. Marcelo conta a história em camadas, até o desfecho central da história, que é a prisão e o sumiço do pai; e o jogo macabro de versões contado covardemente pelos verdugos da Ditadura; bem como a transformação pela qual sua mãe precisou enfrentar para conseguir continuar após a morte do marido. 

Hoje, tive a oportunidade de assisti ao filme encenado magistralmente por Fernanda Torres. Walter Salles, com uma condução impecável da história, conseguiu verter a história do livro para o cinema. Há toda uma expectativa criada - talvez - pela mídia acerca da possibilidade de o filme ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro. Acredito que isso não acontecerá. Não é o tipo de filme que Hollywood aplaude. Não há pirotecnias, espetacularizações, não há sangue, efeitos especiais na obra. Há, sim, a retratação da violência do Estado contra uma família. Há, sim, o luto, a dor, o medo e um tipo de "tortura" infringida à família que ficou. Eunice Paiva lutou para que a memória do seu companheiro não fosse obliterada. 
 
Medonho é saber que até hoje pouca coisa foi feita. Nenhum dos algozes foi preso ou sofreu qualquer punição. Três deles já morreram. Medonho é saber que há pessoas no país que se esforçam para que isso volte; que salivam, que riem, que fazem vista grossa à dor dos familiares enlutados. O filme presta um triplo serviço: (1) faz uma alerta para que o país nunca mais experimente um período como aquele; (2) presta uma homenagem a Eunice Paiva, que lutou pelo resgate da memória do seu marido; (3) honra a memória de Rubens Paiva, morto covardemente pelos algozes da Ditadura. 

Sei que o filme não ganhará qualquer estatueta, mas torceremos pela  pela maravilhosa Fernanda Torres, que rouba a cena. 


sexta-feira, janeiro 10, 2025

"Iaiá Garcia", de Machado de Assis.

 


                “O que ele tinha diante de si eram os campos infinitos da esperança”.

 

“Iaiá Garcia” é o quarto romance escrito por Machado de Assis. Pertence à fase conhecida como romântica. Ao longo desse período, além de “Iaiá Garcia”, Machado havia escrito “Ressurreição”, “A mão e luva” e “Helena”. O escritor conciliava a produção romanesca e a poética.  “Crisálidas” e “Americanas” são dois dos seus livros de poesia desse período. Além disso, o escritor buscava administrar uma vida bastante agitada, de muito trabalho; e enfrentava sensíveis problemas de saúde, que se complicavam por causa dos efeitos colaterais das incipientes medicações do século XIX. No final dos anos 70 daquele século, Machado completaria quarenta anos. Entraria na sua fase madura, ou seja, quando as grandes obras começariam a ser escritas.

Dos quatro romances iniciais do autor, “Iaiá Garcia”, certamente, é aquele em que já se percebe o grande escritor que surgiria a partir de 1881, quando da publicação de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. O romance “Iaiá Garcia” foi escrito ao longo do ano de 1877; todavia, só foi publicado no início de 1878, na Revista Cruzeiro para a qual Machado passou a escrever. Ou seja, trata-se de um romance folhetinesco.

Sua recepção foi morna. O livro é bem construído, há boas análises psicológicas; há aquele rigor machadiano. Sua arquitetura é boa. Pode-se dizer que é perfeita. Machado havia dominado a escrita texto romanesco. Já havia ali cintilações do Machado maduro. O triângulo amoroso entre Iaiá, Jorge e Estela possui aquelas reviravoltas típicas do romantismo. Os textos eram publicados em porções – capítulo a capítulo. Tinham uma ampla constelação de leitores, principalmente do sexo feminino. As moças casadoiras ficavam enlevadas com as reviravoltas; com as intrigas oriundas dos conflitos entre as personagens. Os conflitos eram amorosos. Sobressaíam os vícios escondidos nas aparências sociais – ciúmes, ganância, interesse, orgulho etc. 

No Machado da segunda fase – também conhecida como fase realista -, nota-se um aprofundamento da caracterização das personagens. E como diz Daniel Piza, isso “significa maior rede de implicações aos assuntos, tanto sociais e econômicos como morais e filosóficas”.  Três anos pós a publicação de “Iaiá Garcia”, o escritor carioca publicaria o livro que seria o marco divisor da literatura brasileira – “Memórias Póstumas”. O livro tira o autor dos esquematismos e lança no terreno das grandes questões humanas. Machado passa a ser o senhor das sutis ironias. Cada um dos seus textos que saem após o lançamento de “Iaiá”, funcionam como estudos sobre a condição do psicológica e filosófica do ser humano, bem como assume uma postura crítica e sardônica às questões nacionais. Brás Cubas é o retrato da burguesia nacional. 

Machado aos 68 anos de idade

No livro de 1878, observa-se o quanto Machado estava preso aos esquemas edulcorados. Nesse mesmo ano, em Portugal, Eça de Queirós publicou o demolidor O primo Basílio, uma obra cuja contundência fez a burguesia urbana olhar para os próprios pecados, para as próprias feiuras. O realismo ganhava forma. Não seria possível, após três anos repetir a mesma fórmula dos quatro primeiros romances. As várias contribuições em periódicos com contos, crônicas, resenhas e outras publicações, funcionaram como exercício para aquilo que ele seria depois.

“Iaiá Garcia” é um bom livro. Os personagens são previsíveis. Há aquele movimento típico das moças sonhadoras com o casamento, que funciona como mecanismo de ascensão social. Há o indivíduo macho (o herói), que enfrenta vicissitudes e agruras impensáveis até ficar com a moça que se mostra como uma estrela distante e inatingível; e após as voltas que o mundo dá, ela acaba por encontrar aquele que a perseguia. Trata-se de movimento circular que acaba por criar certa indisposição à medida que se vai lendo.

Apesar de ser Machado de Assis, sabe-se aonde aquilo vai chegar. Na fase madura, o escritor passou a conduzir os textos romanescos de outra forma. Quase sempre, a condução leva a caminhos inopinados. O herói não possui mais o esquematismo previsível. O que passa a vigorar é o devir, pois, afinal, a vida é feita de movimentos incertos e contraditórios. Essa é a mais fina ironia; e Machado capturou como ninguém essa máxima do universo.

quarta-feira, janeiro 01, 2025

O cinema em 2025 - Federico Fellini

 

No ano de 2025, escolhi o cineasta italiano Federico Fellini como o diretor a ser visitado e aprofundado. Já faz cinco anos que repito o mesmo procedimento: escolho um diretor e, em seguida, seleciono doze produções desse diretor. É um exercício bastante enriquecedor. Fazendo uma contabilidade bem básica, posso afirmar que já vi mais de quarenta clássicos imortais dessas figuras icônicas, que foram criadores de uma linguagem muito própria. Aliás, procuro sempre levar em conta esse critério para escolher qualquer nome.

Comecei com Tarkovski (2020); em seguida, passei por Bergman (2021); depois, Kurosawa (2022); logos após, Buñuel (2023); e, ano passado, Truffaut (2024). A dificuldade se deu apenas com Tarkovski, pois sua obra fílmica não passa de oito produções. Mas, pode-se afirmar que são oito galáxias pela grandiosidade.

A escolha de Fellini se deu pela importância que ele possui. Já tive o grato privilégio de assistir a algumas de suas produções – Noites de Cabíria, A doce vida, A estrada da vida, Ensaio de orquestra e 8 ½. É o que me vêm à memória. A estrada da vida e 8 ½ são produções que devem aparecer na lista de todo amante do cinema. São obras em que percebemos a grandiosidade e o olhar único do diretor. A doce vida é o diagnóstico deletério da sociedade do espetáculo. É sublime em suas luzes; mas denuncia a frivolidade. Uma crítica fina, mordaz, áspera ao jornalismo vampiresco de celebridades; ao desejo moderno por exposição. Por trás da aparência, do espetáculo, havia o niilismo e o vazio. O que Fellini diria se tivesse conhecido o efeito brutal das redes sociais na vida das pessoas nos dias de hoje? E Noites de Cabíria possui as tintas do drama bonito, italiano em sua dimensão mais ontológica; há um humanismo dignificador e esperançoso em sua abordagem. Já Ensaio de orquestra é uma comédia refinada. Uma crítica ao totalitarismo. Por outro lado, é uma demonstração da resistência dos grupos divergentes.

Por fim, as cinco obras foram responsáveis por sedimentar profundidade e uma qualidade do olhar. Não é possível sair de um filme de Fellini sem que a dimensão do político, da infância e do onírico não estejam presentes. Por causa desse efeito, criou-se o adjetivo felliniano para representar algo que possua características que fujam ao comum, cuja grandiosidade impressione pela eloquência que evoca.

Sendo assim, escolhi doze obras para ver ao longo de 2025. Dos doze, assisti somente a dois deles. Eis a lista:

1.       Amacord

2.       Os boas vidas

3.       A trapaça

4.       Julieta dos espíritos

5.       Abismo de um sonho

6.       Os palhaços

7.       Mulheres e luzes

8.       8 ½

9.       Noites de Cabíria

10.   Satyricon

11.   A cidade das mulheres

12.   A voz da lua


Minha intenção, ao longo de 2025, é assistir a 70 filmes. Ano passado, consegui cumprir a meta.

1.  Curvas da vida – dir.

2.  Megalopóle -

3. Gladiador II - 

4. Amacord - 

5. No lugar da outra - 

6. Veludo Azul -

7. Batalhão 6888 - 

8. Babygirl

9. Conclave

10.  A fratura

11. Um lugar

12. Ainda estou aqui 

13. Flow

14. Um completo desconhecido

15. 

16. 

17. 

 

segunda-feira, dezembro 30, 2024

Os becos e a memória

 

“...dizem uns que a vida é um perde e ganha. Eu digo que a vida é uma perdedeira só, tamanho é o perder”. P. 29


Terminei a leitura de minha primeira experiência com a prosa da escritora Conceição Evaristo. Em agosto de 2023, tive a oportunidade de vê-la na 1ª edição da Fli Paracatu. Escutei-a rapidamente em uma das mesas. Sua fala mansa, com o sotaque e a simplicidade da gente comum, traduzia muito bem a identidade de seus personagens. Acabei comprando um dos seus livros ao longo da Feira – Becos da Memória. Tive a oportunidade de lê-lo somente agora.

O título da obra é bonito, evocativo em seu delicado sentido poético e em sua significação literária. Becos são “quebradas”, locais de fuga, pontos de passagem - ou, simplesmente, um local de encurralamento, onde não há saída. Memória, por sua vez, é aquele local do indizível, dos afetos. É o lugar em que os fatos são colhidos pela subjetividade, mas a partir das experiências vividas pelo sujeito. Todo indivíduo possui memórias. Essas memórias são capazes de formar o terreno que estrutura a personalidade e fazem com que haja um sentido para o mundo. Um povo, uma comunidade, também, possui memórias. Ou seja, a memória é a categoria existencial que permite que os homens continuem homens e sejam capazes de se entenderem historicamente.

Dessa forma, beco, em sua semântica, pode suscitar a ideia de tortuoso. A memória, quando não escutada, validada,  pode se perder nas curvas da história. Principalmente, as memórias daquelas pessoas a quem não é dado o direito de ser. Essa dimensão está implícita na obra de Evaristo, principalmente no termo cunhado por ela – escrevivência (escrever + vivência). Essa aglutinação representa muito bem o projeto literário da escritora mineira, radicada no Rio de Janeiro.

A sua própria história permite que entendamos o significado dessa palavra. Evaristo - primeiramente - mulher preta, nasceu em Minas Gerais. Ainda muito jovem, foi para o Rio de Janeiro. Trabalhou como doméstica, algo tão próprio às mulheres de sua cor, às mulheres de sua origem. Foi a leitura, a escrita e as vivências que a fizeram sair do esquecimento subterrâneo. Atuou como professora. Formou-se em Letras. Fez mestrado e doutorado. Aos poucos, foi costurando as palavras e trazendo à tona os riscados do tempo que ficam em forma de memória.

Evaristo afirma que a memória do povo preto foi colocada em um limbo. Não foi dada ao negro contar e ressignificar sua própria memória. Alguém fala por ele; determina-lhes o local onde devem ficar; a forma como devem pensar; e o tipo de recorte histórico que devem realizar. Os negros foram aqueles que mais tiveram a memória roubada. É preciso reconstruir o passado, mas como não há documentos escritos em abundância, afinal, a história dos negros é uma história subterrânea, é preciso traduzir suas cores e potência por meio da ficção. A escritora afirma no texto que abre Becos da Memória que “nada que está narrado em becos da memória é verdade, nada que está narrado em Becos da Memória é mentira”. A realidade se apoia na ficção, mas a ficção também é um elemento que fornece mais conteúdo à realidade. Nos textos de Evaristo, as duas se irmanam para produzir a escrevivência. Alguns dos personagens do livro são reais como, por exemplo, o tio Totó.

Conceição Evaristo

O processo de transposição da escrita e da vivência não tem o objetivo de traduzir lutas individuais. Ela se assenta no coletivo. Se fosse apenas subjetiva, morreria no próprio indivíduo. A luta pelo resgate da memória não deve ser a luta de um sujeito refratário, mas de uma coletividade que se escuta e se entende. Em Becos da Memória constatamos esse movimento da apalavra à procura de tornar efetiva a luta pela existência de pessoas marginalizadas. Marginalizar é uma forma de impedir que a memória continue viva e pulsante.

Encontramos no livro um mosaico de micro-vivências, formando um tecido repleto de capilaridades. Os pequenos relatos formam uma paisagem em que há muitos elementos capazes de criar a uniformidade da dor. As personagens são desgraçadamente infelizes à sua maneira. O silenciamento cria uma aniquilação social. A impossibilidade da fala e da visibilização da miséria cria espaços para a violência contra essas existências; e essas violências são sentidas no corpo e, sobretudo, na impossibilidade de ser.

Confesso que não gostei da obra no início da leitura. Depois, fui me acostumando aos personagens. São homens, mulheres, crianças, velhos e velhas que carregam os dramas de milhões de pessoas que habitam favelas, morros e locais marginalizados; sobretudo, são mulheres, as primeiras vítimas da impossibilidade de terem memória e que sentem no corpo a violência do presente e do passado. Um livro essencial para que o país resgate a própria memória. Afinal, o Brasil é um país cheio de becos, de vivências fragmentadas, de história mal contadas, em que são privilegiados certos atores – e certas memórias.

sábado, dezembro 28, 2024

Os dez melhores filmes de Truffaut que vi em 2024.

Ao longo de 2024, excursionei pelo cinema de François Truffaut (1932-1984). Em outubro, completaram quarenta anos de sua morte. Morto aos 52 anos de idade (portanto, ainda muito jovem), o cineasta francês é um dos nomes mais expressivos da história do cinema. É daqueles nomes que se tornaram referência para outros bons diretores - Martin Scorcese, Brian de Palma, Francis Ford Copolla etc. No final de 2023, escolhi doze das suas mais de 30 produções, filmadas ao longo de mais de 30 anos.

Truffaut fez parte de um movimento cinematográfico surgido na França, denominado "Nouvelle Vague" ("Nova Onda"), que buscou romper com os padrões do cinema produzido até os anos 50. Ao lado de nomes como os de Jean-Luc Godard e Éric Rohmer, Truffaut foi um amante inveterado do cinema, vertendo para as telas a psicologia da modernidade. 

Mais do que qualquer característica, a "Nouvelle Vague" se destacava pela forma como se deveria contar uma história. Buscava romper com o simplismo do cinema comercial e impunha uma estética capaz de mexer com o espectador na forma como recepcionava cada produção. Para assistir aos doze filmes de Truffaut os quais escolhi, foi necessário muita atenção. Os diálogos são rápidos. Lancinantes; outros, dispersivos ou fragmentários. O enredo às vezes parece ser conduzido em direções impensadas. A noção de linearidade é afetada, o que demanda do espectador uma atenção excessiva. Essa característica sugere uma forma de retratar o aspecto veloz, transitório e de mudanças abruptas da modernidade. As mudanças sugeridas pela "Nouvelle Vague" enunciavam uma fixação pelo real em detrimento dos efeitos extraordinários tão comuns no cinema comercial. Foram colocados em evidência a luz do dia a dia, as trivialidades do cotidiano; a rua, as pessoas, o trânsito; as cores dos espaços abertos; as feições quase que naturais dos atores. A impressão que temos é a de que estamos ao lado, junto com o diretor, observando cada cena.

O que fica da "Nouvelle Vague" é a quantidade de imagens acumuladas na memória. O que conta é a experiência subjetiva do espectador. Terminei, por exemplo, de assistir, hoje, ao décimo segundo filme - "As duas inglesas e o amor" (para mim, um dos melhores filmes do diretor) e fiquei com uma impressão que não se fixa em apenas uma dimensão da obra. Nele, por exemplo, é possível observar como a noção de mudança da condição dos personagens não conduz a um final previsível, típico das produções previsíveis. Não há uma resolução. O que fica é aquela sensação de que a vida é uma obra sem acabamento e permeada pela incerteza. 

Eis a lista dos dez melhores filmes que vi do diretor francês:

1 - As duas inglesas e o amor
2 - Um só pecado
3 - Fahrenheit 451
4 - Na idade da inocência
5 - O homem que amava as mulheres
6 - Os incompreendidos
7 - Domicílio conjugal
8 - Beijos roubados
9 - Atirem no pianista
10 - O último metrô

P.S. A lista completa está aqui.

terça-feira, dezembro 24, 2024

12 livros de literatura brasileira para 2025

 

Nos últimos três ou quatro anos, tenho empreendido uma jornada pela literatura brasileira. Escolho, no início do ano, doze livros de autores nacionais para ler - um por mês. Privilegio os clássicos. Isso tem me permitido entrar em contato com muitos livros que sempre sonhei ler. Estimo bastante os escritores brasileiros. Conhecer os escritores nacionais é conhecer nossa história, nossas crenças, nossos pecados; e nossas belezas também.

Em 2024, não cheguei nem à metade dos doze livros. Finalizei apenas cinco. Distrai-me com outras leituras. Aqueles que não foram lidos este ano, migrarão para a lista de 2025. A única releitura que farei fica por conta de "Iaiá Garcia", de Machado de Assis. Li-o há bastante tempo. Preciso revisitá-lo. Lerei um novo Jorge Amado. Tenho tentado ler um Jorge por ano em ordem cronológica. Lerei mais uma obra de José Lins do Rego - dessa vez, Eurídice.  A prosa do escritor paraibano é, para mim, viciante. Após a leitura de "Eurídice", terei concluído toda obra romanesca de Zé Lins. 

Voltaremos a ler Carlos Drummond. Em 2023, tive a grata experiência de ler "A rosa do povo", um livro cuja escrita aponta para a visão pessimista do autor. Foi uma das melhores leituras que realizei aquele ano. Escolhi, dessa vez, "Claro Enigma", pois é um dos seus livros mais significativos. Voltaremos aos labirintos da escrita de Clarice Lispector. Leremos Lima Barreto, um dos seus poucos livros que ainda não li. Já Cornélio Penna e Pedro Nava não são escritores tão conhecidos do grande público. Estão restritos ao círculos acadêmicos. Preciso conhecê-los. Há ainda Cascalho, de Herberto Sales, que trata sobre o curto ciclo minerador na Chapada da Diamantina. E ficaram os calhamaços Crônica da casa assassinada e Grande Sertão: Veredas, dois dos livros mais importantes, no século XX, escritos no Brasil.

Eis a lista:

  • A menina morta - Cornélio Penna
  • A maçã no escuro - Clarice Lispector
  • Grande Sertão: Veredas - João Guimarães Rosa
  • Baú de ossos - Pedro Nava
  • Crônica da casa assassinada - Lúcio Cardoso
  • Cascalho - Herberto Sales
  • Numa e a Ninfa - Lima Barreto
  • Claro Enigma - Carlos Drummond de Andrade
  • Iaiá Garcia - Machado de Assis
  • A alma encantadora das ruas - João do Rio
  • Eurídice - José Lins do Rego
  • Jubiabá - Jorge Amado

segunda-feira, dezembro 16, 2024

A descoberta de si e o proibido, segundo Alba de Cespedes

 

“Antes, eu esquecia rápido o que acontecia em casa; mas agora, desde que comecei a anotar os eventos cotidianos, mantenho-os na memória e tento compreender por que se produziram”.

Valeria, personagem do livro “Caderno proibido”.

 

 Alba de Céspedes foi uma importante e arrojada escritora de família ítalo-cubana. Sua mãe era italiana, já o pai, de quem herdou o sobrenome de Céspedes, era cubano. Diplomata de profissão, morou em vários locais da Europa, o que permitiu a Alba um olhar privilegiado sobre a situação do seu tempo nas primeiras décadas do século XX. De família economicamente privilegiada e de posicionamento progressista, de Céspedes, desde muito cedo, foi uma observadora privilegiada. Chegou a ser presa em 1935 por sua militância antifascista.  

Ao longo de sua prodigiosa carreira, de Céspedes foi roteirista de cinema, poetisa, dramaturga, romancista e, sobretudo, uma mulher à frente do seu tempo. A escritora é reputada como uma das mais importantes feministas do século XX na Itália. Essa sua posição que ajudou as a mulheres a refletirem a própria condição, foi demasiado necessária do ponto de vista político.

Em “Caderno Proibido”, encontramos um dos seus mais conhecidos e bem escritos textos. Do ponto de vista da estrutura narrativa, o mote parece simples, sem maiores sofisticações. Um certo dia, uma mulher de pouco mais de quarenta anos, portanto, ainda muito jovem, mãe de dois filhos, casada, vai a um estabelecimento comercial a fim de comprar cigarros para o marido. Era domingo. Inopinadamente, ela decide comprar um diário. Era proibido comprar um bem daquele em pleno domingo. Conseguiu convencer o vendedor arredio que a aconselhou a esconder o caderno “embaixo do casaco”.

Alba de Cespedes

É, a partir dessa ação aparentemente banal que descobrimos quais são os dramas, fatos e contradições que existem no interior da personagem. Narrado em primeira pessoa – afinal, é assim que se redige um diário -, o texto é eloquente em seu movimento subjetivo.  O diário, geralmente um portador de texto que é costurado na adolescência, no romance, é escrito por uma mulher madura, de 43 anos de idade. Ela o escreve em um período de aproximadamente seis meses. Das primeiras anotações até as últimas, pode ser observado um movimento de transformação – no princípio tímido e, consistente, à medida que certa disposição interior ocorre. O diário funciona como um dispositivo que permite a personagem entrar em contato consigo mesma.

Tendo quarenta nos anos 50, em uma Itália dilacerada pela experiência do pós-guerra, Valeria carrega consigo a formatação de um tipo de consciência histórica. Sua filha Mirella – de vinte anos – é a personagem que consegue elaborar as reflexões mais duras e realísticas com a mãe. Riccardo, o filho que Valeria trata com máxima tolerância, reproduz o modelo masculino, criado para ter os privilégios que a sua condição de homem permite. Michele, o companheiro de Valeria, é um tipo afetivamente desidratado por quem Valeria já não nutre os mais cálidos sentimentos. Apenas um respeito vazio e obrigação tácita adquirida pelo dever imposto pela relação monogâmica. A relação dos dois recebe as primeiras cintilações da mornidão. Michele a chama inadequadamente de “mamãe”. E ela atende os requisitos da “mamãe” de todos. Exerce aquela condição própria da mulher pequeno-burguesa. Na Itália pós-guerra, é obrigada a trabalhar a fim de engrossar o orçamento familiar. Envolta pela rotina e pelo trabalho, da preocupação com os afazeres domésticos, Valeria percebe o quanto é despersonalizada da sua condição de mulher; ou pelo menos procurar entender aquilo que lhe é desconhecido.

Valeria experimenta uma contradição, pois descobre que sua jovem filha está tendo um caso com um homem casado. Isso a incomoda. Cria um cenário para disputas e conversas desgastantes com filha. Mirella diz que a pessoa com que está se relacionando, encontra-se em processo de divórcio. Por sua vez, após muito refletir, Valeria vê-se enleada por uma paixão com o seu chefe. Ela gravita entre os deveres de uma boa esposa; de uma dona de casa ciosa pela sua condição e a experiência fagueira da paixão, experimentada com Diego, seu chefe; um homem rico e afetuoso.

Valeria para se conhecer, para desmantelar o papel social que lhe foi atribuído, precisa experimentar o proibido. Escreve de forma clandestina, geralmente, “nos pontos-cegos”, ou seja, quando fica sozinha ou tarde da noite, quando a família vai dormir. Para viver uma sexualidade diferente, ela se relaciona com outro homem, mesmo estando presa a um relacionamento de mais de vinte anos.  O diário permite que a personagem venha a se dá conta da própria subjetividade. Esse movimento ocorre após a observância da própria transformação. Na parte final da obra, ela afirma como se já estivesse plena e consciente da sua obra realizada: “...todas mulheres escondem um caderno negro, um diário proibido”. Essa afirmação sugere que, no fundo, as mulheres possuem um conhecimento de sua própria condição, o que é questionável pela experiência.

“Caderno proibido” é uma obra desafiadora e de bom gosto. Sua escrita é viciante. Há quem afirme que foram os textos de Alba de Céspedes os responsáveis pela escrita ácida de Elena Ferrante. Entende-se o porquê. De Céspedes foi uma escritora poderosa, de um estilo caudaloso, que muito diz e insinua a respeito da condição da mulher do seu tempo; das mulheres que guardam diários e que experimentam o proibido com a finalidade de realizarem autodescobertas.  

quarta-feira, novembro 27, 2024

A história da confusão das línguas em Gênesis 11

 

Uma representação da torre. 

                No livro bíblico de Gênesis, há muitas passagens em que se percebe a existência de etiologias. Entendem-se as etiologias como mitos de fundação. Esses mitos existem com o intuito de justificar a existência do mundo ou de uma estrutura social. Por exemplo, os primeiros capítulos do Gênesis são manifestas etiologias. Observa-se, por exemplo, a descrição que o autor – ou que os autores -  dessa porção do texto realiza(m) ao descrever(em) a forma como supostamente Javé teria criado o mundo numa operação ex nihilo.  A ideia de mito fundador pode ser observada na forma como ocorre a suposta criação do mundo – os mares, as estrelas, o céu, a terra, os animais, etc. O movimento de como as ações são narradas é uma forma de explicação que justifica a realidade e tudo o que existe.

                No capítulo 11.1-9, do mesmo livro de Gênesis, há a descrição do conhecido episódio da Torre de Babel. Ao longo do tempo, já ocorreram inúmeras tentativas de explicação dessa passagem. Nessa descrição, é possível observar outra etiologia que procura explicar a existência das variedades linguísticas existentes no mundo. Certamente, o autor dessa parte do Pentateuco, ao olhar para a polifonia de vozes existentes ao redor de Israel, deve ter se baseado em alguma lenda para produzir o texto.

                O texto afirma que, após terem sobrevivido ao Dilúvio (outra etiologia), alguns homens marcharam para o leste e se estabeleceram na terra de Senaar (v.2)[1]. Em seguida, puseram-se a construir uma “cidade e uma torre cujo ápice penetre os céus” (v.3). O texto, logo em seguida, afirma o seguinte: “Ora, Iahweh desceu para ver a cidade e a torre que os homens tinham construído”. (v.5). O uso da partícula expletiva de realce “ora”, serve para introduzir a figura da divindade judaica na história. Funciona do ponto de vista retórico como a segunda parte do raciocínio que justifica o motivo pelo qual algo passou a ser de determinada forma. Iahweh “desce” de sua morada para realizar duas ações: (1) ver a cidade; e (2) a torre que os homens tinham construído. É importante dizer que a cidade e a torre já estavam construídas, mas, em algum momento, teria reprovado os eventos que ocorriam naquela inventiva comunidade. Seu olhar moralizante condena a ousadia dos homens. Ora, por que os homens não poderiam construir a cidade e a erguer a torre?

O autor dessa porção do texto bíblico aproxima Iahweh das divindades dos povos vizinhos aos israelitas. A ação de “descer” aproxima a divindade judaica aos deuses que habitavam o Olimpo, por exemplo. Zeus de tempos em tempos descia da sua morada para interferir ou mudar determinado aspecto da realidade. Segundo alguns estudiosos, essa é uma evidência da fonte javista[2]. Os registros da fonte javista ou fonte J, sugerem Iahweh como uma divindade antropomórfica. Por exemplo, em Gn 3.8 há a afirmação de que “Iahweh Deus (...) passeava no jardim à brisa do dia”, uma evidente antropormorfização da divindade.  Ao longo do Velho Testamento, principalmente nos livros proféticos, a figura de Iahweh vai ganhando aspectos transcendentes e perdendo a característica antropomórfica.

No versículo seguinte, após ter constatado os empreendimentos humanos, Iahweh afirma que nada seria “irrealizável” para os homens. Percebe uma potência incontrolável na humanidade. Não gosta do que vê. A Nova Tradução Internacional (NVI) está assim traduzida na parte B do versículo 6: “Em breve nada poderá impedir o que planejam fazer”.  Ou seja, depreende-se que nem mesmo Javé seria capaz de controlar essa expansão de poder.

A partir dessa constatação, a divindade suprema do povo judeu decidiu “confundir a linguagem” a fim de que aqueles que empreendiam o projeto desistissem da ação. Curiosamente, no versículo 7 – tanto na NVI quanto na Bíblia de Jerusalém (duas excelentes traduções) – os verbos que exprimem a ação de Javé  estão no plural, deixando implícito que a ação que baratinou a construção foi feita em concílio, ou seja, com mais de uma divindade[3]. Esse é um fenômeno que se repete em passagens do Gênesis. É conhecida a passagem dos capítulos iniciais do livro, em que pode ser lido: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”. Pode ser percebido ainda que a Bíblia de Jerusalém mostra que Iahweh – no versículo 7 - utiliza praticamente os mesmos verbos usados pelos homens no versículo[4]. Há uma ação contrária àquela realizada pelos homens. Enquanto os homens procuram construir, Iahweh procura des-construir, colocar freios à ação humana.

Neste quesito, aponta-se outra característica da fonte javista, ou seja, a procura de distinção do homem e da divindade. A fonte J procura impor limite entre a falibilidade humana e a grandeza de Iahweh, que deve assinalar sua posição como divindade suprema acima do mundo. Ele governa e, se necessário, andará no meio dos homens para mostrar que eles não prevalecem.

Iahweh censura o empreendimento realizado pelos homens. A multiplicação de línguas teria se constituído em um fator de impedimento para que o projeto de expansão da “cidade” e da “torre” continuasse o seu curso. Javé põe freios à ousadia humana. Sua ação é deliberadamente melindrosa; sua interferência, ressentida.  Vale mencionar que os homens que decidiram construir a cidade e a torre faziam parte da geração pós-diluviana. Há ainda uma desconfiança de Iahweh nesses homens. Certamente, havia o entendimento de que a maldade deles era um fator que gerava insatisfação em Iahweh. Reside neste fato outra característica da fonte javista – ou seja, a descrição do crescimento da maldade entre os homens. Iahweh teria feito os homens de forma perfeita, mas eles foram alcançando escalas de ensandecimento cada vez mais acentuadas.

Representação de um zigurate. 

Nos versículos finais que retratam o mito, Iahweh “dispersa” aqueles obstinados homens “por toda a face da terra”. Aquele incidente ficou conhecido como “Babel”. Os judeus se reportavam a Babilônia como Babel, cujo significado é “confusão” ou “mistura”. A escrita dessa etiologia, certamente, procurava, a partir de uma lenda existente, fazer um revisionismo histórico, criando um mito fundador. Alguns estudiosos, indicam que a fonte javista foi redigida nos séculos VI e V a.C.

É importante dizer ainda que essa revisão histórica procurava obumbrar a grandiosidade da civilização apontada no texto. Como indicam as pistas do texto, é possível que os substratos da referência histórica remetam à Babilônia. Afirmar a supremacia de Iahweh sobre essa “torre” e essa “cidade” sugere que há uma animosidade contra o crescimento e a pujança daquela civilização. Alguns intérpretes apontam que, quando o texto fala de “torre”, talvez, estejam a sugerir os famosos zigurates. Essas construções eram comuns entre os assírios, babilônicos e sumérios. Elas possuíam a forma de uma pirâmide terraplanada e ostentavam uma função religiosa. Aos serem construídos, buscava-se colocar os homens mais próximos das divindades. Além da função religiosa, serviam de biblioteca, espaço de observação das estrelas e local para guardar grãos, o que indica uma importante função para aquelas civilizações. O registro dos primeiros zigurates remontam dois milênios antes de Cristo.

Em suma, ao escreverem o mito fundador da conhecida história da confusão das línguas, buscava-se produzir uma reinterpretação da história: (1) para rebaixar a grandiosidade da civilização babilônica; (2) para delimitar a soberania de Iahweh como divindade suprema; (3) para desacreditar a estrutura religiosa dos povos vizinhos; (4) para criar uma narrativa com objetivos doutrinários, com finalidade de formação identitária. Ou seja, e, a partir disso, neutralizar o reconhecimento da grandiosidade das outras nações vizinhas a Israel.

 

[1] Realizei a minha leitura na Bíblia de Jerusalém, por isso emprego o termo “Iahweh” conforme aprece na tradução. 

[2] A teoria das fontes ou críticas das fontes é uma hipótese desenvolvida por Julius Welhausen. Segundo esse estudioso alemão, o Pentateuco é o resultado da estruturação de quatro fontes principais: a eloísta, a javista, a sacerdotal e deuteronomista.

[3] (1) A Bíblia de Jesuralém diz: “Vinde! Desçamos! Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros”.  (2) A NVI afirma: “Venham, desçamos e confundamos a língua que falam, para que não entendam mais uns aos outros".

[4] No versículo 4 – os homens afirmam: “Vinde! Construamos uma cidade e uma torre cujo ápice penetre os céus!” No versículo 7 – Iahweh diz: “Vinde! Desçamos! Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam”.