“Paulo gostava mais
de conversa que de piano; Flora conversava. Pedro ia mais com piano que com a
conversa, Flora tocava. Ou então fazia ambas as coisas, e tocava falando,
soltava a rédea aos dedos e à língua”.
Capítulo XXXV
“Todos os contrastes
estão no homem”.
Capítulo XXXV
Terminada a releitura de “Esaú e
Jacó”, restou a impressão de que essa é uma das obras que melhor desvelam o seu
autor. Revela um escritor maduro, que oscila entre a sátira, o niilismo e um
estoicismo recolhido, personificado na pessoa do personagem do Conselheiro Aires.
Vale lembrar que o ataráxico Aires seria o personagem principal que levaria o
nome do último romance escrito por Machado – “Memorial de Aires”. No de caso de
“Esaú e Jacó”, o escrito emprega o pessimismo e o faz por meio daquilo que ele
sabia fazer melhor – a ironia fina, escorregadia, urdida em uma arquitetura
textual primorosa.
O livro foi publicado no ano de
1904, mesmo ano em que faleceu a sua inseparável companheira de 35 anos –
Carolina Xavier. Machado contava com 65 anos de idade. Era um sujeito
experimentado e habilidoso. Havia acumulado uma carreira de muito trabalho e
consequente sucesso. Até aquele momento, escrevera obras que estão colocadas no
panteão definitivo das produções literárias nacionais – “Memórias Póstumas”, “Dom
Casmurro”, “Quincas Borba”, além de inauditos contos como “O alienista”, “A
igreja do diabo”, “O espelho” e “A teoria do medalhão” entre outros. O seu
realismo havia se escancarado, como lhe era comum; todavia, pode-se notar um
ceticismo medido e mais acentuado em “Esaú e Jacó”.
As camadas de ironia do texto construído em torno dos antípodas Paulo e
Pedro, encobrem, numa camada profunda, o entendimento de que a realidade pode
ser diversa; que a história dos homens pode se alternar; que o elemento
preponderante da realidade é a impermanência. Na parte final da obra, o
narrador afirma: “Enfim, a morte chega, por muito que se demore, e arranca a
pessoa ao pranto ou ao silêncio”. Em um dos capítulos da obra, naquelas
incursões típicas do narrador que dialoga com o leitor (tão próprias de Machado
de Assis), encontramos: “Não envelheças, amiga minha, por mais que os anos te
convidem a deixar a primavera; quando muito aceita o estio”. Verifica-se que há
uma acentuada preocupação com a questão do “tempo”. Ele aparece como motivo de
reflexões ou envolve a vida dos personagens, traduzindo em acontecimentos em
que se nota o quanto as personagens são atravessadas por esses efeitos. Ninguém
pode se conduzir pela existência, simplesmente, ignorando-o; ou desconsiderando
os seus sinais.
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Machado de Assis
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Fato curioso reside – de início – no nome da obra. Esaú e Jacó são os
nomes dos dois filhos de Isaque – e este, filho de Abraão, de acordo com o
texto bíblico. Os dois irmãos são criados de forma distinta. Esaú é caçador e
tem a predileção do pai; Jacó, por sua vez, é benquisto pela sua mãe Rebeca. Os
dois são concebidos em disputa. Esaú nasce primeiro, mas Jacó segura-lhe o
calcanhar. O nome Jacó deriva de uma expressão hebraica que significa “ele
agarra o calcanhar” e serve para designar uma pessoa de comportamento enganoso.
Esaú é o mais velho e, portanto, todas as prerrogativas jurídicas da herança caíam
sobre ele. Jacó e sua mãe conseguiram usar
um estratagema para fazer com que o irmão mais velho trocasse o direito de
primogenitura por um prato de lentilha. Mais tarde, todos os efeitos da
primogenitura recaem no colo de Jacó e ele passa a ser chamado de Israel. Esse
confronto manifesto é explicado por meio de uma profecia dirigida a Rebeca pelo
próprio Javé: “O mais velho servirá ao mais novo”. Os dois fundariam dois povos
poderosos, mas essas nações seriam inimigas.
Apesar desse pano de fundo, os dois personagens de “Esaú e Jacó” não são
chamados dessa forma. Um se chama Paulo e, outro, Pedro. Aquele era um
entusiasta republicano e este um calejado monarquista. São completamente distintos
em várias questões. Parecem existir para se confrontarem. Paulo e Pedro também
são nomes extraídos Bíblia. Todavia, são nomes ligados à fundação do
cristianismo. Enquanto Pedro estava ligado à Igreja de Jerusalém, Paulo é o apóstolo
onipresente que estrutura um discurso e o leva aos confins do Império Romano. Ele
é o pregador da diáspora, seu “ethos” é o da integração, do universalismo, da
difusão plural, pois pregava aos romanos, gregos e demais povos da Antiguidade.
Dominava a língua grega, a língua da cultura sistematizada da época. Além
disso, é possível que soubesse o latim, a língua do Império e responsável por
organizar as questões políticas e militares. Pedro, por sua vez, estava
circunscrito ao ambiente judaico de Jerusalém e dominava, possivelmente, o
aramaico. Nota-se, assim, que Machado genialmente une Antigo e Velho Testamento
para construir o enredo da obra. Estica-se um fio que se apropria de elementos
judaicos e elementos cristãos.
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O Rio de Janeiro, em 1889, ano da Proclamação da República
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Outro importante aspecto diz respeito ao momento histórico que a obra
retrata. Nesse sentido, é um importante texto para estabelecer conexões com a
fundação da chamada República Velha. Lima Barreto também a retrataria, mais
tarde, em “O triste fim de Policarpo Quaresma”. Pedro torna-se médico; forma-se
no Rio de Janeiro, sede da capital do Império. Paulo, torna-se advogado; estuda
em São Paulo, um dos centros irradiadores das ideias republicanas. Vale
mencionar que em São Paulo fica a prestigiada Faculdade de Direito do Largo do
São Francisco. Lá estudaram boa parte dos intelectuais que alimentaram a chama
do republicanismo no final do século XIX.
A única questão que une os dois personagens é a paixão pela linda Flora,
que ora se decide por um; ora se inclina para outro, sem tomar qualquer decisão.
Observa-se que ela morre sem se decidir nem por um nem por outro. Em “Esaú e
Jacó” o jogo muda, ganha novos contornos, pois a vida é repleta do efêmero. O
ser humano também o é. Em tempos de mudanças, o que fica é a força da falta de
estabilidade. Para algumas pessoas, essa característica gera inseguranças. No
geral, as pessoas não lidam muito bem com a impermanência. Todavia, a realidade
se constitui pela transformação, pela contradição.
A obra faz referência a alguns dos
eventos que foram responsáveis pela organização política e econômica do país no
século XX. Um dos principais eventos foi a Proclamação da República, arrancando
o país da condição de Império, o último das Américas. Menciona-se ainda a Abolição
da escravatura, um dos eventos que mudaria em definitivo a relação do capital
com as forças produtivas. Além dessas questões, a mudança do Império para
República deflagrou uma crise econômica denominada de Encilhamento.
Sendo assim, observa-se que Machado se utiliza de personagens complexos
para realizar uma análise das contradições existentes no ser humano, bem como refletir
sobre os eventos políticos do seu tempo. Machado lança mão da ambiguidade para
apontar que a vida pode ser conduzida por mares diversos. Tanto Paulo quanto
Pedro são faces da mesma verdade, que é a vida. As indecisões presentes em
Flora também fazem parte da existência. As paixões exacerbadas apenas fazem
sofrer, pois como diz o próprio narrador “todos os contrastes estão no homem”.