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Cena do filme "Rapsódia em agosto", de Akira Kurozawa |
“Não existe morte natural. Nada que acontece a um homem é natural, já que sua presença coloca o mundo em questão”.
Simone de Beauvoir
Esta semana, fui com minha mãe visitar aquela que é considerada minha madrinha. Há uma tradição entre os nordestinos e, talvez, em outras regiões do Brasil de, por estimação, dar o filho, quando este nasce, para que alguém seja padrinho ou madrinha. Tal escolha reflete um tipo de honra e potencializa laços de fraternidade. Evidencia-se nessa ação um certo lastro virtuoso, pois certas qualidades precisam ser analisadas. Geralmente, a escolha solidificará ainda mais a amizade entre as partes envolvidas. As gerações mais novas não entendem o significado desse tipo de escolha. O costume tem se perdido ao longo do tempo.
Não atribuo muita relevância a esse tipo de tradição, mas respeito o seu significado. Convocado por minha mãe, fui de maneira cordata. Era uma questão de honra que eu fosse visitar a comadre Bil. Cheguei a casa pequena, no bairro do Cajá, em Vitória de Santo Antão – minha cidade. A casa onde já estivera antes, é pequena, acanhada, despojada de conforto, espremida entre outras casas semelhantes. A rua de pedra irregular é estreita. Ao chegar, os vizinhos ficaram observando quem eram os forasteiros. Suas três filhas nos recepcionaram. Depois das amenidades iniciais, fui conduzido ao quarto para poder falar com ela. Em um espaço pequeno, abafado, sentada sobre uma cama, ela se encontrava. Acometida por uma cegueira, resultante de um glaucoma, comadre Bil aguardava com o seu aspecto pequeno e frágil. Falamos rapidamente. Dei a benção a pedido de minha mãe – um gesto que indicador de respeito. Aquiesci por entender o que o momento representava. Minha mãe – parece que intencionalmente saiu; fiquei sozinho com aquela figura pequena, habitada por memórias e vivências. Fazia um bom tempo que eu não dirigia a palavra àquela pessoa que se encontrava sobre cama, em um espaço exíguo, de aspecto encurvado. Olhei buscando resgatar outras memórias. Imagens dela ainda jovem. A memória não realizou exercício tão promissor.
Narrou-me com sua fala ordeira e contada, uma multidão de fatos. Passeamos pelo passado. Ela contou sobre como se tornou vizinha do meu avô, quando tinha dezenove anos de idade. Descreveu pormenores sobre os meus tios com uma desenvoltura bíblica. Falou sobre as árvores frutíferas que cultivara em seu sítio, antes da mudança para Vitória de Santo Antão, algo que se deu há quase quarenta anos.
Tenho memórias esparsas de como era a sua casa. A sala com plantas. Algumas trepadeiras. Suas filhas costumavam passar óleo de soja nas folhas para que elas brilhassem. O chão limpo. Os sofás rústicos. A imagem dela e do meu padrinho desenhada na parede. O bigode desenhado do meu padrinho. O corredor que levava à cozinha. Na caminhada que se fazia da sala à cozinha, era possível passar por dois ou três quartos. Um pano ordinário fazia o papel de cortina. Não era possível enxergar nada. Eram furnas misteriosas. Minha memória não consegue fixar nenhuma forma naquele espaço. A cozinha também é um espaço, em minha memória, sem móveis; não consigo formular qualquer silhueta de qualquer coisa.
A porta era daquelas com dois compartimentos. Era possível abrir a parte de cima e deixar a parte de baixo fechada. Da cozinha, era possível enxergar, do lado direito, uma ampla porção do sítio. Em certa ocasião, em um mês bastante chuvoso, aconteceu um episódio que permanece em minha cabeça. João Severo, meu padrinho, plantou um pé de banana nanica. Com a chuva, o adubo e a boa terra, a planta deu um cacho de banana enorme. A planta inclinava-se para o chão. O pé da planta era sustentado por uma estaca, que foi providenciada para que a planta não viesse abaixo. Em um dia qualquer, uma torrencial chuva, seguida de um vento uivante, ameaçava derrubar o pé de banana. Seria uma grande perda. Estávamos todos na cozinha. João Severo ao constatar o que estava para acontecer, saiu em disparada a fim de remediar o que parecia inevitável. Ele desejava firmar outra estaca. A chuva grossa e o vento vigoroso davam a aparência ao meu padrinho de uma figura pequena que lutava contra forças ancestrais. A camisa aberta e o chapéu de palha conferiam à sua aparência o aspecto de um xógum que enfrentava as forças naturais com bravia inteligência e resistência. Não lembro qual foi o desfecho da luta.
Relaciono a cena de João Severo em sua luta particular, épica, para não permitir que o pé de bananeira viesse a pique, por causa dos golpes lancinantes que tomava das forças naturais, com imagem da senhora pequena e frágil que caminha empunhando um guarda-chuva, em meio à tempestade, do filme “Rapsódia em agosto”, de Akira Kurozawa. A delicada figura curvada avança inexpugnável, decididamente. Tudo é grande para ela. Associo o meu padrinho a essa imagem. Sua teimosia resistente contra o vento rodopiante e a chuva espessa era a luta do pescador de “O velho e o mar”, de Ernest Hemingway. Enquanto conversava com ela, esses temas passavam pela minha cabeça como cenas de um filme.
Com 78 anos de idade, impedida de caminhar (perdeu o movimento das pernas, após uma queda e uma cirurgia sem sucesso), cega, ela depende das filhas. A certeza que me ficou é que há memórias vivas dentro dela. Sua lucidez é um farol na noite escura em que vive. O corpo impôs certos condicionamentos. Impedida de ver, ela lembra; sem possibilidades de locomoção, ela demonstra uma ambivalência entre a necessidade e a suficiência.
Fiquei com sua imagem pequenina. Impactou-me vê-la daquela forma. Daí, volto à frase de Beauvoir: “nada que aconteça ao homem é natural”. Somos mais que os determinismos biológicos do corpo. Todavia, só podemos ser no corpo. Dessa forma, somos a mistura da fragilidade corpórea com a potência dos afetos, ou seja, daquilo que nos faz ser e existir.
Suas filhas disseram à minha que ela chorou bastante quando fomos embora. Disse que gostou de ter conversado comigo. Verbalizou que gostaria de ter me visto, constatado como eu estou fisicamente.
Escrito em janeiro de 2025, em Vitória de Santo Antão-PE