O SER CARLINO
"O sol não apenas é novo a cada dia, mas sempre novo, continuamente". (Heráclito)
segunda-feira, março 10, 2025
"O primo Basílio", de Eça de Queiroz.
quarta-feira, março 05, 2025
De que são feitos os dias? | Cecília Meireles
De que são feitos os dias?
– De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.
Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.
De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
– do medo que encadeia
todas essas mudanças.
Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças…
Acredito que este seja um dos poemas que mais concentram o mistério de que é feita a vida. Cecília consegue criar paralelos, oscilações, fluxos antitéticos, que englobam o conteúdo da existência. Camus diz em "O mito de Sísifo" que só 'vive quem toma consciência do absurdo'. Sim. Vive quem consegue lidar com o absurdo das perdas proporcionadas pelo tempo; que consegue administrar as "vagarosas saudades" e as "silenciosas lembranças"; que se escancara - incompreensível - diante de si.
A existência só se torna plena para quem reconhece ser um vulcão gerador de "mágoas sombrias", mas que é capaz de "pequenos lampejos", de "vagas felicidades" e de "inatuais esperanças". Somos feitos de contradições, de movimentos inconscientes, gestados da cumplicidade daquilo que, muitas vezes, não controlamos e não sabemos da sua textura. A vida absurda é feita "de loucuras", "de crimes", "de pecados", "de glórias", de fracassos, de avanços... e retrocessos. Somos feitos "de medo". Misturamos muitas substâncias em nosso ser. Distraímo-nos a maior parte do tempo. Dentro dessa realidade "vivemos", avançamos, "choramos" com as resoluções desencontradas e, com isso, forjamos "sinistras alianças".
domingo, março 02, 2025
"Ainda estou aqui" - livro e filme
sexta-feira, janeiro 10, 2025
"Iaiá Garcia", de Machado de Assis.
“O que ele tinha diante de si eram os campos infinitos da esperança”.
“Iaiá Garcia” é o quarto romance escrito por Machado de Assis. Pertence à fase conhecida como romântica. Ao longo desse período, além de “Iaiá Garcia”, Machado havia escrito “Ressurreição”, “A mão e luva” e “Helena”. O escritor conciliava a produção romanesca e a poética. “Crisálidas” e “Americanas” são dois dos seus livros de poesia desse período. Além disso, o escritor buscava administrar uma vida bastante agitada, de muito trabalho; e enfrentava sensíveis problemas de saúde, que se complicavam por causa dos efeitos colaterais das incipientes medicações do século XIX. No final dos anos 70 daquele século, Machado completaria quarenta anos. Entraria na sua fase madura, ou seja, quando as grandes obras começariam a ser escritas.
Dos quatro romances iniciais do autor, “Iaiá Garcia”, certamente, é aquele em que já se percebe o grande escritor que surgiria a partir de 1881, quando da publicação de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. O romance “Iaiá Garcia” foi escrito ao longo do ano de 1877; todavia, só foi publicado no início de 1878, na Revista Cruzeiro para a qual Machado passou a escrever. Ou seja, trata-se de um romance folhetinesco.
Sua recepção foi morna. O livro é bem construído, há boas análises psicológicas; há aquele rigor machadiano. Sua arquitetura é boa. Pode-se dizer que é perfeita. Machado havia dominado a escrita texto romanesco. Já havia ali cintilações do Machado maduro. O triângulo amoroso entre Iaiá, Jorge e Estela possui aquelas reviravoltas típicas do romantismo. Os textos eram publicados em porções – capítulo a capítulo. Tinham uma ampla constelação de leitores, principalmente do sexo feminino. As moças casadoiras ficavam enlevadas com as reviravoltas; com as intrigas oriundas dos conflitos entre as personagens. Os conflitos eram amorosos. Sobressaíam os vícios escondidos nas aparências sociais – ciúmes, ganância, interesse, orgulho etc.
No Machado da segunda fase – também conhecida como fase realista -, nota-se um aprofundamento da caracterização das personagens. E como diz Daniel Piza, isso “significa maior rede de implicações aos assuntos, tanto sociais e econômicos como morais e filosóficas”. Três anos pós a publicação de “Iaiá Garcia”, o escritor carioca publicaria o livro que seria o marco divisor da literatura brasileira – “Memórias Póstumas”. O livro tira o autor dos esquematismos e lança no terreno das grandes questões humanas. Machado passa a ser o senhor das sutis ironias. Cada um dos seus textos que saem após o lançamento de “Iaiá”, funcionam como estudos sobre a condição do psicológica e filosófica do ser humano, bem como assume uma postura crítica e sardônica às questões nacionais. Brás Cubas é o retrato da burguesia nacional.
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Machado aos 68 anos de idade |
No livro de 1878, observa-se o quanto Machado estava preso aos esquemas edulcorados. Nesse mesmo ano, em Portugal, Eça de Queirós publicou o demolidor O primo Basílio, uma obra cuja contundência fez a burguesia urbana olhar para os próprios pecados, para as próprias feiuras. O realismo ganhava forma. Não seria possível, após três anos repetir a mesma fórmula dos quatro primeiros romances. As várias contribuições em periódicos com contos, crônicas, resenhas e outras publicações, funcionaram como exercício para aquilo que ele seria depois.
“Iaiá Garcia” é um bom livro. Os personagens são previsíveis. Há aquele movimento típico das moças sonhadoras com o casamento, que funciona como mecanismo de ascensão social. Há o indivíduo macho (o herói), que enfrenta vicissitudes e agruras impensáveis até ficar com a moça que se mostra como uma estrela distante e inatingível; e após as voltas que o mundo dá, ela acaba por encontrar aquele que a perseguia. Trata-se de movimento circular que acaba por criar certa indisposição à medida que se vai lendo.
Apesar de ser Machado de Assis, sabe-se aonde aquilo vai chegar. Na fase madura, o escritor passou a conduzir os textos romanescos de outra forma. Quase sempre, a condução leva a caminhos inopinados. O herói não possui mais o esquematismo previsível. O que passa a vigorar é o devir, pois, afinal, a vida é feita de movimentos incertos e contraditórios. Essa é a mais fina ironia; e Machado capturou como ninguém essa máxima do universo.
quarta-feira, janeiro 01, 2025
O cinema em 2025 - Federico Fellini
No ano de 2025, escolhi o
cineasta italiano Federico Fellini como o diretor a ser visitado e aprofundado. Já faz cinco
anos que repito o mesmo procedimento: escolho um diretor e, em seguida,
seleciono doze produções desse diretor. É um exercício bastante enriquecedor.
Fazendo uma contabilidade bem básica, posso afirmar que já vi mais de quarenta
clássicos imortais dessas figuras icônicas, que foram criadores de uma
linguagem muito própria. Aliás, procuro sempre levar em conta esse critério
para escolher qualquer nome.
Comecei com
Tarkovski (2020); em seguida, passei por Bergman (2021); depois, Kurosawa
(2022); logos após, Buñuel (2023); e, ano passado, Truffaut (2024). A
dificuldade se deu apenas com Tarkovski, pois sua obra fílmica não passa de
oito produções. Mas, pode-se afirmar que são oito galáxias pela grandiosidade.
A escolha de
Fellini se deu pela importância que ele possui. Já tive o grato privilégio de
assistir a algumas de suas produções – Noites de Cabíria, A doce vida, A estrada da
vida, Ensaio de orquestra e 8 ½. É o que me vêm à memória. A
estrada da vida e 8 ½ são produções que devem aparecer
na lista de todo amante do cinema. São obras em que percebemos a grandiosidade
e o olhar único do diretor. A doce vida é o diagnóstico
deletério da sociedade do espetáculo. É sublime em suas luzes; mas denuncia a
frivolidade. Uma crítica fina, mordaz, áspera ao jornalismo vampiresco de
celebridades; ao desejo moderno por exposição. Por trás da aparência, do
espetáculo, havia o niilismo e o vazio. O que Fellini diria se tivesse conhecido
o efeito brutal das redes sociais na vida das pessoas nos dias de hoje? E Noites
de Cabíria possui as tintas do drama bonito, italiano em sua dimensão
mais ontológica; há um humanismo dignificador e esperançoso em sua abordagem. Já Ensaio
de orquestra é uma comédia refinada. Uma crítica ao totalitarismo. Por
outro lado, é uma demonstração da resistência dos grupos divergentes.
Por fim, as
cinco obras foram responsáveis por sedimentar profundidade e uma qualidade do
olhar. Não é possível sair de um filme de Fellini sem que a dimensão do
político, da infância e do onírico não estejam presentes. Por causa desse
efeito, criou-se o adjetivo felliniano para representar algo que possua características
que fujam ao comum, cuja grandiosidade impressione pela eloquência que evoca.
Sendo assim,
escolhi doze obras para ver ao longo de 2025. Dos doze, assisti somente a dois
deles. Eis a lista:
1.
Amacord
2.
Os boas vidas
3.
A trapaça
4.
Julieta dos espíritos
5.
Abismo de um sonho
6.
Os palhaços
7.
Mulheres e luzes
8.
8 ½
9.
Noites de Cabíria
10.
Satyricon
11.
A cidade das mulheres
12.
A voz da lua
Minha
intenção, ao longo de 2025, é assistir a 70 filmes. Ano passado, consegui
cumprir a meta.
1. Curvas da vida – dir.
2. Megalopóle -
3. Gladiador II -
4. Amacord -
5. No lugar da outra -
6. Veludo Azul -
7. Batalhão 6888 -
8. Babygirl
9. Conclave
10. A fratura
11. Um lugar
12. Ainda estou aqui
13. Flow
14. Um completo desconhecido
15.
16.
17.
segunda-feira, dezembro 30, 2024
Os becos e a memória
“...dizem uns que a vida é um
perde e ganha. Eu digo que a vida é uma perdedeira só, tamanho é o perder”. P.
29
Terminei a leitura de minha primeira experiência com a prosa da escritora Conceição Evaristo. Em agosto de 2023, tive a oportunidade de vê-la na 1ª edição da Fli Paracatu. Escutei-a rapidamente em uma das mesas. Sua fala mansa, com o sotaque e a simplicidade da gente comum, traduzia muito bem a identidade de seus personagens. Acabei comprando um dos seus livros ao longo da Feira – Becos da Memória. Tive a oportunidade de lê-lo somente agora.
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Conceição Evaristo |
sábado, dezembro 28, 2024
Os dez melhores filmes de Truffaut que vi em 2024.
Ao longo de 2024, excursionei pelo cinema de François Truffaut (1932-1984). Em outubro, completaram quarenta anos de sua morte. Morto aos 52 anos de idade (portanto, ainda muito jovem), o cineasta francês é um dos nomes mais expressivos da história do cinema. É daqueles nomes que se tornaram referência para outros bons diretores - Martin Scorcese, Brian de Palma, Francis Ford Copolla etc. No final de 2023, escolhi doze das suas mais de 30 produções, filmadas ao longo de mais de 30 anos.
Truffaut fez parte de um movimento cinematográfico surgido na França, denominado "Nouvelle Vague" ("Nova Onda"), que buscou romper com os padrões do cinema produzido até os anos 50. Ao lado de nomes como os de Jean-Luc Godard e Éric Rohmer, Truffaut foi um amante inveterado do cinema, vertendo para as telas a psicologia da modernidade.
Mais do que qualquer característica, a "Nouvelle Vague" se destacava pela forma como se deveria contar uma história. Buscava romper com o simplismo do cinema comercial e impunha uma estética capaz de mexer com o espectador na forma como recepcionava cada produção. Para assistir aos doze filmes de Truffaut os quais escolhi, foi necessário muita atenção. Os diálogos são rápidos. Lancinantes; outros, dispersivos ou fragmentários. O enredo às vezes parece ser conduzido em direções impensadas. A noção de linearidade é afetada, o que demanda do espectador uma atenção excessiva. Essa característica sugere uma forma de retratar o aspecto veloz, transitório e de mudanças abruptas da modernidade. As mudanças sugeridas pela "Nouvelle Vague" enunciavam uma fixação pelo real em detrimento dos efeitos extraordinários tão comuns no cinema comercial. Foram colocados em evidência a luz do dia a dia, as trivialidades do cotidiano; a rua, as pessoas, o trânsito; as cores dos espaços abertos; as feições quase que naturais dos atores. A impressão que temos é a de que estamos ao lado, junto com o diretor, observando cada cena.
O que fica da "Nouvelle Vague" é a quantidade de imagens acumuladas na memória. O que conta é a experiência subjetiva do espectador. Terminei, por exemplo, de assistir, hoje, ao décimo segundo filme - "As duas inglesas e o amor" (para mim, um dos melhores filmes do diretor) e fiquei com uma impressão que não se fixa em apenas uma dimensão da obra. Nele, por exemplo, é possível observar como a noção de mudança da condição dos personagens não conduz a um final previsível, típico das produções previsíveis. Não há uma resolução. O que fica é aquela sensação de que a vida é uma obra sem acabamento e permeada pela incerteza.
Eis a lista dos dez melhores filmes que vi do diretor francês:
1 - As duas inglesas e o amor
2 - Um só pecado
3 - Fahrenheit 451
4 - Na idade da inocência
5 - O homem que amava as mulheres
6 - Os incompreendidos
7 - Domicílio conjugal
8 - Beijos roubados
9 - Atirem no pianista
10 - O último metrô
P.S. A lista completa está aqui.
terça-feira, dezembro 24, 2024
12 livros de literatura brasileira para 2025
Nos últimos três ou quatro anos, tenho empreendido uma jornada pela literatura brasileira. Escolho, no início do ano, doze livros de autores nacionais para ler - um por mês. Privilegio os clássicos. Isso tem me permitido entrar em contato com muitos livros que sempre sonhei ler. Estimo bastante os escritores brasileiros. Conhecer os escritores nacionais é conhecer nossa história, nossas crenças, nossos pecados; e nossas belezas também.
Em 2024, não cheguei nem à metade dos doze livros. Finalizei apenas cinco. Distrai-me com outras leituras. Aqueles que não foram lidos este ano, migrarão para a lista de 2025. A única releitura que farei fica por conta de "Iaiá Garcia", de Machado de Assis. Li-o há bastante tempo. Preciso revisitá-lo. Lerei um novo Jorge Amado. Tenho tentado ler um Jorge por ano em ordem cronológica. Lerei mais uma obra de José Lins do Rego - dessa vez, Eurídice. A prosa do escritor paraibano é, para mim, viciante. Após a leitura de "Eurídice", terei concluído toda obra romanesca de Zé Lins.
Voltaremos a ler Carlos Drummond. Em 2023, tive a grata experiência de ler "A rosa do povo", um livro cuja escrita aponta para a visão pessimista do autor. Foi uma das melhores leituras que realizei aquele ano. Escolhi, dessa vez, "Claro Enigma", pois é um dos seus livros mais significativos. Voltaremos aos labirintos da escrita de Clarice Lispector. Leremos Lima Barreto, um dos seus poucos livros que ainda não li. Já Cornélio Penna e Pedro Nava não são escritores tão conhecidos do grande público. Estão restritos ao círculos acadêmicos. Preciso conhecê-los. Há ainda Cascalho, de Herberto Sales, que trata sobre o curto ciclo minerador na Chapada da Diamantina. E ficaram os calhamaços Crônica da casa assassinada e Grande Sertão: Veredas, dois dos livros mais importantes, no século XX, escritos no Brasil.
Eis a lista:
- A menina morta - Cornélio Penna
- A maçã no escuro - Clarice Lispector
- Grande Sertão: Veredas - João Guimarães Rosa
- Baú de ossos - Pedro Nava
- Crônica da casa assassinada - Lúcio Cardoso
- Cascalho - Herberto Sales
- Numa e a Ninfa - Lima Barreto
- Claro Enigma - Carlos Drummond de Andrade
- Iaiá Garcia - Machado de Assis
- A alma encantadora das ruas - João do Rio
- Eurídice - José Lins do Rego
- Jubiabá - Jorge Amado
segunda-feira, dezembro 16, 2024
A descoberta de si e o proibido, segundo Alba de Cespedes
“Antes, eu
esquecia rápido o que acontecia em casa; mas agora, desde que comecei a anotar
os eventos cotidianos, mantenho-os na memória e tento compreender por que se
produziram”.
Valeria,
personagem do livro “Caderno proibido”.
Alba de Céspedes foi uma importante e arrojada escritora de família ítalo-cubana. Sua mãe era italiana, já o pai, de quem herdou o sobrenome de Céspedes, era cubano. Diplomata de profissão, morou em vários locais da Europa, o que permitiu a Alba um olhar privilegiado sobre a situação do seu tempo nas primeiras décadas do século XX. De família economicamente privilegiada e de posicionamento progressista, de Céspedes, desde muito cedo, foi uma observadora privilegiada. Chegou a ser presa em 1935 por sua militância antifascista.
Ao longo de sua prodigiosa carreira, de Céspedes foi roteirista de cinema, poetisa, dramaturga, romancista e, sobretudo, uma mulher à frente do seu tempo. A escritora é reputada como uma das mais importantes feministas do século XX na Itália. Essa sua posição que ajudou as a mulheres a refletirem a própria condição, foi demasiado necessária do ponto de vista político.
Em “Caderno Proibido”,
encontramos um dos seus mais conhecidos e bem escritos textos. Do ponto de
vista da estrutura narrativa, o mote parece simples, sem maiores sofisticações.
Um certo dia, uma mulher de pouco mais de quarenta anos, portanto, ainda muito
jovem, mãe de dois filhos, casada, vai a um estabelecimento comercial a fim de
comprar cigarros para o marido. Era domingo. Inopinadamente, ela decide comprar
um diário. Era proibido comprar um bem daquele em pleno domingo. Conseguiu
convencer o vendedor arredio que a aconselhou a esconder o caderno “embaixo do
casaco”.
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Alba de Cespedes |
É, a partir dessa ação aparentemente banal que descobrimos quais são os dramas, fatos e contradições que existem no interior da personagem. Narrado em primeira pessoa – afinal, é assim que se redige um diário -, o texto é eloquente em seu movimento subjetivo. O diário, geralmente um portador de texto que é costurado na adolescência, no romance, é escrito por uma mulher madura, de 43 anos de idade. Ela o escreve em um período de aproximadamente seis meses. Das primeiras anotações até as últimas, pode ser observado um movimento de transformação – no princípio tímido e, consistente, à medida que certa disposição interior ocorre. O diário funciona como um dispositivo que permite a personagem entrar em contato consigo mesma.
Tendo quarenta nos anos 50, em uma Itália dilacerada pela experiência do pós-guerra, Valeria carrega consigo a formatação de um tipo de consciência histórica. Sua filha Mirella – de vinte anos – é a personagem que consegue elaborar as reflexões mais duras e realísticas com a mãe. Riccardo, o filho que Valeria trata com máxima tolerância, reproduz o modelo masculino, criado para ter os privilégios que a sua condição de homem permite. Michele, o companheiro de Valeria, é um tipo afetivamente desidratado por quem Valeria já não nutre os mais cálidos sentimentos. Apenas um respeito vazio e obrigação tácita adquirida pelo dever imposto pela relação monogâmica. A relação dos dois recebe as primeiras cintilações da mornidão. Michele a chama inadequadamente de “mamãe”. E ela atende os requisitos da “mamãe” de todos. Exerce aquela condição própria da mulher pequeno-burguesa. Na Itália pós-guerra, é obrigada a trabalhar a fim de engrossar o orçamento familiar. Envolta pela rotina e pelo trabalho, da preocupação com os afazeres domésticos, Valeria percebe o quanto é despersonalizada da sua condição de mulher; ou pelo menos procurar entender aquilo que lhe é desconhecido.
Valeria experimenta uma contradição, pois descobre que sua jovem filha está tendo um caso com um homem casado. Isso a incomoda. Cria um cenário para disputas e conversas desgastantes com filha. Mirella diz que a pessoa com que está se relacionando, encontra-se em processo de divórcio. Por sua vez, após muito refletir, Valeria vê-se enleada por uma paixão com o seu chefe. Ela gravita entre os deveres de uma boa esposa; de uma dona de casa ciosa pela sua condição e a experiência fagueira da paixão, experimentada com Diego, seu chefe; um homem rico e afetuoso.
Valeria para se conhecer, para desmantelar o papel social que lhe foi atribuído, precisa experimentar o proibido. Escreve de forma clandestina, geralmente, “nos pontos-cegos”, ou seja, quando fica sozinha ou tarde da noite, quando a família vai dormir. Para viver uma sexualidade diferente, ela se relaciona com outro homem, mesmo estando presa a um relacionamento de mais de vinte anos. O diário permite que a personagem venha a se dá conta da própria subjetividade. Esse movimento ocorre após a observância da própria transformação. Na parte final da obra, ela afirma como se já estivesse plena e consciente da sua obra realizada: “...todas mulheres escondem um caderno negro, um diário proibido”. Essa afirmação sugere que, no fundo, as mulheres possuem um conhecimento de sua própria condição, o que é questionável pela experiência.
“Caderno proibido” é uma obra desafiadora e de bom gosto. Sua escrita é viciante. Há quem afirme que foram os textos de Alba de Céspedes os responsáveis pela escrita ácida de Elena Ferrante. Entende-se o porquê. De Céspedes foi uma escritora poderosa, de um estilo caudaloso, que muito diz e insinua a respeito da condição da mulher do seu tempo; das mulheres que guardam diários e que experimentam o proibido com a finalidade de realizarem autodescobertas.
quarta-feira, novembro 27, 2024
A história da confusão das línguas em Gênesis 11
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Uma representação da torre. |
No livro bíblico de Gênesis, há
muitas passagens em que se percebe a existência de etiologias. Entendem-se as
etiologias como mitos de fundação. Esses mitos existem com o intuito de
justificar a existência do mundo ou de uma estrutura social. Por exemplo, os
primeiros capítulos do Gênesis são manifestas etiologias. Observa-se, por exemplo,
a descrição que o autor – ou que os autores - dessa porção do texto realiza(m) ao descrever(em)
a forma como supostamente Javé teria criado o mundo numa operação ex nihilo. A ideia de mito fundador pode ser observada na
forma como ocorre a suposta criação do mundo – os mares, as estrelas, o céu, a
terra, os animais, etc. O movimento de como as ações são narradas é uma forma
de explicação que justifica a realidade e tudo o que existe.
No capítulo 11.1-9, do mesmo
livro de Gênesis, há a descrição do conhecido episódio da Torre de Babel. Ao
longo do tempo, já ocorreram inúmeras tentativas de explicação dessa passagem. Nessa
descrição, é possível observar outra etiologia que procura explicar a
existência das variedades linguísticas existentes no mundo. Certamente, o autor
dessa parte do Pentateuco, ao olhar para a polifonia de vozes existentes ao
redor de Israel, deve ter se baseado em alguma lenda para produzir o texto.
O texto afirma que, após terem
sobrevivido ao Dilúvio (outra etiologia), alguns homens marcharam para o leste
e se estabeleceram na terra de Senaar (v.2)[1].
Em seguida, puseram-se a construir uma “cidade e uma torre cujo ápice penetre
os céus” (v.3). O texto, logo em seguida, afirma o seguinte: “Ora, Iahweh
desceu para ver a cidade e a torre que os homens tinham construído”. (v.5). O
uso da partícula expletiva de realce “ora”, serve para introduzir a figura da
divindade judaica na história. Funciona do ponto de vista retórico como a
segunda parte do raciocínio que justifica o motivo pelo qual algo passou a ser
de determinada forma. Iahweh “desce” de sua morada para realizar duas ações:
(1) ver a cidade; e (2) a torre que os homens tinham construído. É importante
dizer que a cidade e a torre já estavam construídas, mas, em algum momento,
teria reprovado os eventos que ocorriam naquela inventiva comunidade. Seu olhar
moralizante condena a ousadia dos homens. Ora, por que os homens não poderiam
construir a cidade e a erguer a torre?
O autor dessa porção do texto bíblico aproxima Iahweh das divindades dos
povos vizinhos aos israelitas. A ação de “descer” aproxima a divindade judaica
aos deuses que habitavam o Olimpo, por exemplo. Zeus de tempos em tempos descia
da sua morada para interferir ou mudar determinado aspecto da realidade. Segundo
alguns estudiosos, essa é uma evidência da fonte javista[2].
Os registros da fonte javista ou fonte J, sugerem Iahweh como uma divindade
antropomórfica. Por exemplo, em Gn 3.8 há a afirmação de que “Iahweh Deus (...)
passeava no jardim à brisa do dia”, uma evidente antropormorfização da
divindade. Ao longo do Velho Testamento,
principalmente nos livros proféticos, a figura de Iahweh vai ganhando aspectos transcendentes
e perdendo a característica antropomórfica.
No versículo seguinte, após ter constatado os empreendimentos humanos, Iahweh
afirma que nada seria “irrealizável” para os homens. Percebe uma potência
incontrolável na humanidade. Não gosta do que vê. A Nova Tradução Internacional
(NVI) está assim traduzida na parte B do versículo 6: “Em breve nada poderá
impedir o que planejam fazer”. Ou seja,
depreende-se que nem mesmo Javé seria capaz de controlar essa expansão de
poder.
A partir dessa constatação, a divindade suprema do povo judeu decidiu
“confundir a linguagem” a fim de que aqueles que empreendiam o projeto
desistissem da ação. Curiosamente, no versículo 7 – tanto na NVI quanto na
Bíblia de Jerusalém (duas excelentes traduções) – os verbos que exprimem a ação
de Javé estão no plural, deixando
implícito que a ação que baratinou a construção foi feita em concílio, ou seja,
com mais de uma divindade[3].
Esse é um fenômeno que se repete em passagens do Gênesis. É conhecida a passagem
dos capítulos iniciais do livro, em que pode ser lido: “Façamos o homem à nossa
imagem e semelhança”. Pode ser percebido ainda que a Bíblia de Jerusalém mostra
que Iahweh – no versículo 7 - utiliza praticamente os mesmos verbos usados
pelos homens no versículo[4].
Há uma ação contrária àquela realizada pelos homens. Enquanto os homens
procuram construir, Iahweh procura des-construir, colocar freios à ação humana.
Neste quesito, aponta-se outra característica da fonte javista, ou seja,
a procura de distinção do homem e da divindade. A fonte J procura impor limite
entre a falibilidade humana e a grandeza de Iahweh, que deve assinalar sua
posição como divindade suprema acima do mundo. Ele governa e, se necessário,
andará no meio dos homens para mostrar que eles não prevalecem.
Iahweh censura o empreendimento realizado pelos homens. A multiplicação
de línguas teria se constituído em um fator de impedimento para que o projeto
de expansão da “cidade” e da “torre” continuasse o seu curso. Javé põe freios à
ousadia humana. Sua ação é deliberadamente melindrosa; sua interferência,
ressentida. Vale mencionar que os homens
que decidiram construir a cidade e a torre faziam parte da geração
pós-diluviana. Há ainda uma desconfiança de Iahweh nesses homens. Certamente,
havia o entendimento de que a maldade deles era um fator que gerava
insatisfação em Iahweh. Reside neste fato outra característica da fonte javista
– ou seja, a descrição do crescimento da maldade entre os homens. Iahweh teria
feito os homens de forma perfeita, mas eles foram alcançando escalas de
ensandecimento cada vez mais acentuadas.
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Representação de um zigurate. |
Nos versículos finais que retratam o mito, Iahweh “dispersa” aqueles obstinados homens “por toda a face da terra”. Aquele incidente ficou conhecido como “Babel”. Os judeus se reportavam a Babilônia como Babel, cujo significado é “confusão” ou “mistura”. A escrita dessa etiologia, certamente, procurava, a partir de uma lenda existente, fazer um revisionismo histórico, criando um mito fundador. Alguns estudiosos, indicam que a fonte javista foi redigida nos séculos VI e V a.C.
É importante dizer ainda que essa revisão histórica procurava obumbrar a
grandiosidade da civilização apontada no texto. Como indicam as pistas do
texto, é possível que os substratos da referência histórica remetam à Babilônia.
Afirmar a supremacia de Iahweh sobre essa “torre” e essa “cidade” sugere que há
uma animosidade contra o crescimento e a pujança daquela civilização. Alguns
intérpretes apontam que, quando o texto fala de “torre”, talvez, estejam a
sugerir os famosos zigurates. Essas construções eram comuns entre os assírios,
babilônicos e sumérios. Elas possuíam a forma de uma pirâmide terraplanada e
ostentavam uma função religiosa. Aos serem construídos, buscava-se colocar os
homens mais próximos das divindades. Além da função religiosa, serviam de
biblioteca, espaço de observação das estrelas e local para guardar grãos, o que
indica uma importante função para aquelas civilizações. O registro dos
primeiros zigurates remontam dois milênios antes de Cristo.
Em suma, ao escreverem o mito fundador da conhecida história da confusão
das línguas, buscava-se produzir uma reinterpretação da história: (1) para
rebaixar a grandiosidade da civilização babilônica; (2) para delimitar a
soberania de Iahweh como divindade suprema; (3) para desacreditar a estrutura
religiosa dos povos vizinhos; (4) para criar uma narrativa com objetivos
doutrinários, com finalidade de formação identitária. Ou seja, e, a partir
disso, neutralizar o reconhecimento da grandiosidade das outras nações vizinhas
a Israel.
[1]
Realizei a minha leitura na Bíblia de Jerusalém, por isso emprego o termo
“Iahweh” conforme aprece na tradução.
[2]
A teoria das fontes ou críticas das fontes é uma hipótese desenvolvida por
Julius Welhausen. Segundo esse estudioso alemão, o Pentateuco é o resultado da
estruturação de quatro fontes principais: a eloísta, a javista, a sacerdotal e
deuteronomista.
[3]
(1) A Bíblia de Jesuralém diz: “Vinde! Desçamos! Confundamos a sua linguagem
para que não mais se entendam uns aos outros”.
(2) A NVI afirma: “Venham, desçamos e confundamos a língua que falam,
para que não entendam mais uns aos outros".
[4] No
versículo 4 – os homens afirmam: “Vinde!
Construamos uma cidade e uma torre
cujo ápice penetre os céus!” No versículo 7 – Iahweh diz: “Vinde! Desçamos! Confundamos a sua linguagem para que
não mais se entendam”.