quarta-feira, agosto 29, 2012

Agostinho e Nietzsche - duas forças antagônicas

A história possui um fluxo imparcial e incotido. O tempo, essa consciência que temos de que tudo é movimento, lapida nossas percepções. A morte, essa senhora escrupulosa joga conosco em todo tempo - e sempre ganha, como no filme O sétimo selo de Ingmar Bergman -, sendo uma artífice cruel. Ela nivela todos os seres que existem no mundo. Todos os movimentos acabam. Tudo que vive tende à morte. O movimento iniciado tende ao não movimento. A lei da inércia assim comprova. A lei da entropia também comprova isso.

Pensando em tais coisas, lembrei que dois dos meus pensadores favoritos morreram em datas distintas do final de agosto - Nietzsche no dia 25 de agosto; e, Santo Agostinho, no dia 28 de agosto. É curiosa a fascinação que nutro por esses dois pensadores tão antagônicos. O que me faz gostar de cada um deles se eles estão em campos completamente opostos? Como explicar essa predileção?

Penso que o fato de admirar Agostinho esteja relacionado aos anos de seminário. Recordo que ainda no seminário li alguns livros sobre o pensamento de Agostinho. Mais tarde li As Confissões e percebi o veio poético do filósofo da patrística.  As Confissões é um dos livros mais belos que já li em minha vida. É considerada como uma das obras mais importantes da história. A disposição confessional do texto provoca uma forte propensão contemplativa e especulativa. Agostinho naquela obra conseguiu derramar de forma lírica a paixão que nutria pelo seu Deus. Como um daqueles antigos salmistas bíblicos, Agostinho declama em suas confissões:

"Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu, lá fora, a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo e eu não estava Convosco! Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria, se não existisse em Vós. Porém, chamastes-me, com uma voz tão forte, que rompestes a minha Surdez! Brilhastes, cintilastes, e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes Perfume: respirei-o, a plenos pulmões, suspirando por Vós. Saboreei-Vos e, agora, tenho fome e sede de Vós. Tocastes-me e ardi, no desejo da Vossa Paz".

O que gera interesse em Agostinho é como ele podia viver bem com o seu Deus. A sua maior busca era a sabedoria. Desde a leitura de Hortensius, de Cícero, o filósofo de Hipona empreendeu uma busca apaixonada. Ele assim afirma acerca do livro de Cícero: "Ele [o livro] mudou o alvo das minhas afeições e encaminhou para Vós, Senhor, as minhas preces, transformando as minhas aspirações e desejos".

Dessa busca a qual Agostinho empreendeu grande parte de sua vida, sai a sua famosa formulação: "Criaste-nos para vós, Senhor, e nossa alma não repousa enquanto não descansar em vós". Agostinho era um homem de argúcia inquieta. Sua conversão não possui o nível de dramaticidade da conversão de Paulo. Segundo as suas confissões, ela se deu por uma leitura de um texto de Romanos. Tal leitura abriu os seus olhos para a vida dissoluta que levava. E a partir dali ele viveu para amarrar a sua existência aos preceitos dos textos bíblicos.

O que me faz admirar Agostinho, como naquela pergunta feita por ele: "O que amo em Ti quando digo que te amo?" Fico a me perguntar, já que o cristianismo é, para mim, um processo imperioso de coerção pela linguagem e pela conjuntura de dominação do legado romano. Se o cristianismo não tivesse se tornado a religião oficial do Império Romano, será que ele ainda existiria? Religião em si é mera linguagem fugindo, assim, de qualquer método experimental.

Admiro Agostinho pela sua devoção. Acredito na autenticidade de sua paixão. A sua divindade é dubitável, sua paixão, não. "Quando Agostinho afirma: "Concedei-me o que amo, porque estou inebriado de amor", está justamente desejando aquilo para qual ele existiu, que é a paixão pela sua paixão. Quando Agostinho diz: "Qual criatura existe que não exija a vossa existência?", faz uma afirmação que se baseia em sua credulidade. Étienne Gilson no seu extraordinário livro Introdução ao pensamento de Santo Agostinho (que comprei em maio deste ano), diz que o problema metafísico é problema apenas para os outros filósofos. Não para Agostinho. Para o filósofo, a existência de Deus é tão certa quanto 7+3=10. Assim, primeiro vem a fé, depois os argumentos racionais. "Creio para depois entender". Analisando Paulo e Agostinho, fico com Agostinho. Sua pena era altamente poética. Paulo era um judeu etnocêntrico que levou "o sonho" do seu povo para "os confins da terra" - e o pior é que foi bem sucedido.

O filósofo em sua autenticidade funda, dessa forma, uma filosofia da fé. Pois nada escapa às perscrutações de suas intenções em Deus.

Já Nietzsche é daquelas paixões viscerais. O cínico. O Díogenes moderno que aponta o nível de cegueira dos homens vivendo à plena luz. Se Agostinho possui paixão, Nietzsche possui sarcasmo e um martelo para fazer em cacos as verdades construídas e cristalizadas na história. Verdades que se arrogam à função de instrutora dos homens. Verdades que compelem para o enfraquecimento dos homens; que os afasta de uma vida autêntica.

Nietzsche foi um inimigo implacável do cristianismo. Ele até admitia Cristo. Para ele, Cristo foi o único cristão. O evangelho segundo Cristo, viveu enquanto Cristo esteve vivo. O resto é invenção dos apóstolos, principalmente, por Paulo, o ressentido.

Para Nietzsche, as verdades são mais perigosas do que as mentiras. Elas fazem mal porque engendram convicções. E estas são as piores inimigas da imaginação para que nos tornemos aquilo que realmente somos. As verdades nos desviam de nós mesmos. Fazem com que vivamos um projeto alheio, que não é um projeto construído para a nossa própria existência. Tanto a verdade quanto a mentira são criações humanas. Para Nietzsche não há problemas puramente espirituais. Todas as possibilidades do existir estão no corpo. E verdade é tudo aquilo que vivi, vivo e viverei. Daí a necessidade, de formulamos um projeto que transforme a nossa existência em um grande poema.

É grande para Nietzsche todo aquele ser que dá vasão aos seus instintos, que experimenta a criação de si mesmo. Ou seja, o homem é algo que pode ser criado e re-inventado a todo instante. Tudo é movimento. Tudo flui. Cristalizar o tempo é amesquinhar a própria existência.

Quando analiso dois filósofos da envergadura de Nietzsche e Agostinho, enxergo as palavras de cada um deles dentro de mim. Agostinho preconiza aquilo que fui sendo; já Nietzsche é o momento atual, a força que me impele, que me chama a aceitar a vida como um presente que dou a mim mesmo.



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