quarta-feira, outubro 10, 2018

Uma quase carta

Boa noite, ...!

            Você perguntou pelo meu filho, o Bernardo, e eu não respondi. Ele está bem! No próximo sábado, dia 13, completará um mês. Este primeiro mês foi bastante difícil. Muitas adaptações – para ele e, principalmente, para mim e para a Liana. Mas, estamos indo. Acredito que o pior já passou. Ele chegou a ficar dez dias internado. Estava com uma dificuldade inicial em mamar. Aprendeu, entretanto, e agora o rapaz está crescendo e ganhando peso. 

            Foi colocado por você que não deseja “discutir política”. Entretanto, não há como tentar estabelecer um colóquio sem que o tema não venha à tona. Vou tentar colocar em tópicos para facilitar a compreensão. Claro, tudo aquilo que eu colocar aqui, é resultado de minha percepção – e, principalmente, de minhas limitações. Respeito o seu ponto de vista. O grande desafio da democracia é justamente o convívio, a relação na diversidade.

(1)  Por que o ódio PT?

O PT é um partido que surgiu dos movimentos populares. Possui uma história, pois. Nos quase quarenta anos de sua história, sempre foi alvo de muita polêmica. O partido conseguiu construir uma base bastante forte. Durante muito tempo, milhões de brasileiros desejaram que o PT chegasse ao poder máximo do país, a Presidência da República. A primeira tentativa se deu no ano de 1989. Na ocasião, Lula perdeu a eleição para Fernando Collor. Houve duas outras tentativas – 1994 e 1998 – com duas outras derrotas. Em 2002, após todo um período de desengano e melancolia política com o governo do PSDB, o PT chegou ao poder. Acontece uma repaginação do partido. Lula assumiu um discurso mais econômico e pacífico. Para governar, fez aliança com uma quantidade considerável de partidos. Formou um governo de coalizão. Distribuiu cargos aos aliados como uma contraprestação política. 

            Em 2005, ocorre o primeiro escândalo, o do Mensalão, como ficou conhecido. O governo foi colocado contra a parede. Todavia, Lula foi reeleito em 2006. No segundo mandato, o governo petista conseguiu seu melhor momento.  O país cresceu. A economia decolou. Os trabalhadores passaram a perceber um cenário positivo. Lula saiu do governo em 2010, com mais de 80% de aprovação, um feito realmente extraordinário. Tanto é assim, que ele conseguiu colocar a Dilma no seu lugar. Ela começou bem. Até 2012, tinha índices de aprovação acima dos 60%. A partir de 2013, as coisas começaram a perder o compasso. Com as manifestações de julho daquela ano, o governo passou para o campo defensivo. 

            A mídia passou a veicular sistematicamente reportagens que associavam o governo à corrupção. Todos os problemas do país foram direcionados ao PT. Em 2012, surge a Operação Lava Jato, que, segundo seus capituladores, é uma operação apartidária. Mas, notou-se um objetivo: as figuras do PT, tendo no seu principal nome, Lula, a seta direcionada. Observe-se que o partido que tinha/tem o maior número de nomes implicados na operação é o PP, mas ficou a noção de que era o PT. Associaram o nome do PT como de um partido corrupto, de ladrões. 

            Ora, a repetição de uma sentença e a aplicação do significado dessa sentença como sendo a verdade, passa a ter efeitos extraordinários. Isso já aconteceu em alguns momentos da história. O exemplo mais claro é o que Hitler fez com os judeus durante a Segunda Guerra. Naquele contexto, a Alemanha estava esfacelada por causa da Primeira Guerra e o Tratado de Versalhes. Havia crise, fome, desemprego; caos econômico, incertezas, medo. O astuto Hitler entendeu que nesses momentos você precisa criar uma narrativa e direcioná-la para um alvo. Hitler direcionou o seu discurso para as minorias - ciganos, comunistas, judeus, homossexuais, etc. É a lógica do “nós”, os injustiçados e sofredores e, “eles, os algozes, os autores de nossa crise. 

            Em 2014, a reeleição agravou a crise, pois, a partir dali, houve uma militância severa contra o PT. A destituição de Dilma, em 2016, foi outro momento complexo. Vale lembrar que 2016 foi o ano dos panelaços. Havia uma mesma fala que ia das crianças de colo aos anciãos: de que o PT era um partido de corruptos e ladrões. O Jornal Nacional, por exemplo, colocava reportagens de uma hora contra o partido, conectando a imagem do partido à corrupção. Era como se não houvesse nada de bom no PT. Nesse ínterim, chega ao poder Michel Temer, uma figura que não conseguiu nenhuma legitimidade: (1) por ter o seu governo associado a um impeachment duvidoso. Ficou claro que se tratou de um golpe, apesar de ter seguido o fluxo constitucional. A Constituição foi apenas um objeto que vestiu o feito de legalidade. Observe que os cristãos queimaram pessoas na Idade Média usando a Bíblia; ou que a mesma Bíblia foi usada para legitimar a superioridade de brancos sobre negros nos Estados Unidos. E, nem por isso, esses acontecimentos podem se dizer cristãos. Da mesma forma, o impeachment seguiu o rito constitucional, mas não havia base constitucional por não haver crime de responsabilidade. (2) destituíram a Dilma com a alegação de que era preciso acabar com a corrupção, todavia, os escândalos de corrupção continuaram a existir. Havia indícios claros de que o governo Temer era bem pior do que aquele suposto governo corrupto do PT. A mídia foi até complacente com Temer. Não houve um bombardeio como houve com o PT. Vemos, assim, a seletividade da mídia brasileira. 

            Vale mencionar que o trabalho da mídia serviu para esvaziar o debate político. Tanto a mídia como as figuras do Judiciário trabalharam para criminalizar a política. O cidadão comum não via mais motivos para acreditar na política e nos políticos. A boa política, aquela que estabelece o debate, que discute ideias, foi varrida do mapa. A sociedade não conseguiu mais dinamizá-la. O cenário era de completa feiura. De repente, passamos a enfrentar a crise econômica que agravou ainda mais o cenário. A política foi contaminada. Jogou-se toda a culpa no colo do PT.  Ora, raciocinemos, se o governo do país estava nas mãos do PT e todos os escândalos estavam associados ao PT, é natural que o ódio tenha um direcionamento. Atualmente, as pessoas não querem nem ouvir falar no nome do partido. Associam-no ao que de mais deplorável há no país; que estamos nessa situação de crise econômica, política e moral por causa do partido. 

(2) A quem interessava a saída do PT?

Some-se a isso que o PT foi tolerado pelas elites do poder, enquanto foi conveniente. A sociedade brasileira sempre foi adepta de teorias conspiratórias. Sempre houve “a crendice” de que há uma iminente ameaça de invasão comunista. Essa foi uma das desculpas utilizadas para sustentar a Ditadura Militar. De tempos em tempos isso acontece. Em momentos de crises, quando o medo, a insegurança, passam a funcionar como motores, esse fantasma aparece.  

Para princípio de conversa, o PT não é um partido socialista ou comunista. Ele é, no máximo, um partido com ideias que assentam numa preocupação com causas sociais por causa de sua origem. Isso é verdade pelo fato de o partido ter ficado treze anos no poder, sem que o Brasil tenha se transformado numa Coreia do Norte. Muito pelo contrário, foi um período de forte lucro para os capitalistas. A saída do PT foi desejada pelos grupos que mandam no país. Não se aceitou o resultado das urnas em 2014. O povo escolheu, mas o que é um povo, em um país em que o regime democrático é apenas um detalhe? Queriam apenas continuar lucrando facilmente sem que houvesse qualquer empecilho, qualquer muro, obstáculo.

(3) O PT é inocente?

            Certamente, que essa resposta é “não”. Ao fazer um governo de coalizão, o partido se abriu para as negociatas. Nomeou gente de todo tipo. Essas alianças fugiram ao controle do partido. Fazer política não é um negócio fácil. Exige exposição. Conversa. Diálogo. Exige que se sente com adversários pouco lisonjeáveis. Com figuras interesseiras. Com pessoas que não possuem compromisso ético; que desejam apenas benefício, sem qualquer preocupação ética. Enquanto era oposição, partido possuía um discurso. Com a ida para a situação, teve que refrear o discurso. 

             Vale mencionar, que em nome da governabilidade, o partido se expôs de maneira não detida. Não mediu consequências. Associou-se com o que há de pior na política brasileira e foram essas alianças que contaminaram o partido. É preciso que ele faça uma mea culpa, uma espécie de exame de consciência. 

(4) Por que não voto em Bolsonaro ou por que ele seria “um mau presidente”? 

            Primeiro é importante dizer que, com relação ao futuro, nós precisamos resgatar os fatos do passado. É nesse paradoxo que podemos conjecturar ou fazer análises.
            Bolsonaro já mostrou ao longo de sua história que é uma figura uma tanto quanto duvidosa. É um “politiqueiro” de carteirinha, daqueles que fazem carreira na política, sem qualquer compromisso com o país. Ao longo dos seus 28 anos no Congresso, possui um péssimo repertório de contribuições ao povo que paga o seu salário. Sempre que a imagem dele vem à minha mente, comparo-o ao Golum, aquele personagem do Senhor dos Anéis, uma criatura medíocre que foi enfeitiçada pelo poder e se tornou um ser digno de pena, completamente desumanizado. Ao longo de gerações, a triste e bizarra criatura viveu escondida no ventre de cavernas afastadas, alimentando-se de comida crua, vivendo única e exclusivamente para o anel que o enfeitiçava e transformava a sua personalidade cada vez mais despersonalizada. Penso que há uma relação muito curiosa entre essa imagem e a do candidato do PSL. Ele ficou durante muito tempo escondido, alimentando-se do poder. Colocou os seus filhos na política. De modo que aqueles que o comparam a um exemplo na política, talvez se esqueçam de que ele se assemelha a qualquer dessas oligarquias familiares – Sarneys, Barbalhos, Maias, Magalhães, Calheiros etc. E outra: Bolsonaro não seria ninguém se o país passasse por um momento de tranquilidade democrática. Ele se alimenta da crise e sabe isso.

            Saindo do campo da literatura e entrando no chão da história, é preciso afirmar que Bolsonaro é uma figura que construiu a sua carreira na política colecionando bravatas. Ele representa o valentão. Aquele que não tem medo de nada. O machão. Aquele sujeito destemido, masculinizado, e que ajuda a criar um imaginário beligerante na cabeça do brasileiro médio que convive com a ineficácia da justiça e com os escancarados escândalos de corrupção. Há no brasileiro médio um desejo de fazer justiça com as próprias mãos pelo fato de a justiça do Estado não fazê-lo. Afinal, ele grita muito porque não tem ideias. Literalmente, ele ganha no grito. Sempre colecionou polêmicas, pelo fato de ter uma inteligência (quando me refiro a inteligência, faço-o em sentido lato – emocional, política etc) questionável. Nota-se o seu completo despreparo. 

            Mas por que ele faz tanto sucesso, por que ele é uma unanimidade? (a) como falei acima, estamos em um momento de desalento, de completa descrença na política ou “na velha política”. As pessoas enxergam nele, a solução amarga para um crise que parece que não tem fim. (b) A crise econômica levou muitos brasileiros a desejarem uma mudança. Aquele modelo, entendem, defendido pelos governos anteriores não serve mais. Deseja-se que haja privatizações; que o Estado “diminua” (uma palavra que encerra alguns sentidos velados); o mercado assuma a dianteira do país. (c) os escândalos de corrupção revelaram uma face intolerável. Sendo assim, é preciso que surja alguém para colocar ordem “na casa”. Como Bolsonaro sempre vocalizou um discurso radical, histriônico, direto, viram nele a possibilidade de ele ser essa mudança. Se há violência, ele diz que o “cidadão de bem” não deve ficar na defensiva, mas partir para cima do ladrão. Que é preciso colocar armas na mão da população para que ela se defenda, confundido de maneira perigosa o que é segurança pública. É preciso diferenciar o que é a microviolência e a macroviolência. 

Sendo assim, é preciso chamar a atenção para algumas questões:

(a) Ao se escolher Bolsonaro, escolhe-se um candidato que já sinalizou ter pouca preocupação com o estado democrático de direitos. Um dos fundamentos do estado democrático são garantias dirigidas ao cidadão, radicadas no conceito de direitos humanos. É preciso considerar que todo ser humano é dotado de direitos e de garantias básicas – direito a vida, respeito à sua condição etc. Em um estado democrático, o fundamento que sustenta essa delicada teia é o respeito à singularidade do outro. Temos visto que algumas pessoas têm se sentido legitimadas, por causa do discurso ódio, a fazerem a coisas mais perigosas para o nosso equilíbrio social. Eu não voto em um candidato que diz que “bandido bom é bandido morto”. O bandido deve ser punido pela lei e não por mim. O Estado é a entidade que possui legitimidade para encabeçar juridicamente esse pleito.  Eu não voto em um candidato que vai ao estado do Acre e diz em um comício de forma irresponsável que era preciso “metralhar toda a petralhada do país”. Numa democracia, há limites para a minha fala. Nenhum direito é absoluto. O maior perigo é o efeito que isso causa nas massas. Isso pode ser visto, por exemplo, no filme “A onda”. Se não viu, veja-o e perceba o quanto determinados movimentos possuem um poder de coerção sobre as individualidades. Eu não voto em um candidato que afirma “que não estupra” determinada mulher, pelo fato de ele não merecer ser estuprada. Então há mulheres que merecem ser estupradas? Eu não voto em um candidato que afirma que teve “quatro filhos”, mas deu uma fraquejada e acabou vindo “uma mulher”. Eu não voto em um candidato que, quando perguntado sobre o que diria caso um dos seus filhos namorasse uma mulher negra e ele responde sem perturbações: “Eu eduquei muito bem os meus filhos”. 

(b) Bolsonaro é fruto de um momento. Assim foi também com Collor. Em 1989, aconteceu da mesma forma. Apareceu um jovem com uma linguagem sedutora, descolando-se “da velha política”. Dizia ele que acabaria com a corrupção, que caçaria “os marajás”. Que era preciso sumir com a bandeira “vermelha” do PT. Que a bandeira do país era “verde”, “amarela”, “branca” e “azul”. Seu partido inexpressivo, o PRN, elegeu mais de quarenta deputados o PSL elegeu 52, no último domino, um partido que elegera apenas um deputado em 2014. Collor foi um sucesso completo. Tratava-se de um jovem visionário, esportista, bonito, que falava bem, que possuía um discurso que sequestrou o coração da classe média. Todavia, suas medidas desastradas trouxeram grandes prejuízos para o país. A primeira medida econômica, quando assumiu, foi o confisco das poupanças. As pessoas não acreditaram. Na campanha, prometeu acabar com a inflação, mas, ao deixar o país, a inflação estava em mais de 1.200% ao ano. E o mais estarrecedor: o seu governo era alimentado com propinas, como ficou constatado naquilo que ficou conhecido como “Esquema PC”. Ou seja, esses eventos com figuras messiânicas e caricatas sempre redundam em desengano. 

(c) Do ponto de vista econômico, penso que mergulharemos o país numa crise medonha, trazendo consequências danosas para os mais pobres. Temos como “posto Ipiranga” no seu governo a figura de um banqueiro chamado Paulo Guedes, uma figura bastante controversa – assim como tivemos Zélia Cardoso de Melo durante o governo Collor. Muitas pessoas pensam que gerir um país é a mesma coisa que gerir uma empresa. Um país é diverso. Possui demandas mais complexas. Há pessoas necessitadas, pobres, que precisam de políticas públicas do Estado para terem uma dignidade mínima. Por exemplo, a maioria dos brasileiros não tem dinheiro para pagar saúde privada. A solução não é a privatização da saúde. Como se resolve a demanda da saúde? Investindo em saúde pública de qualidade. Como se resolve o problema da educação? Oferecendo uma educação de qualidade, com professores bem preparados e motivados. O grande problema desses economistas de mercado, como Paulo Guedes é que, para eles, os pobres, os desvalidos, aqueles que estão abaixo da linha de pobreza, não aparecem no orçamento. Eles se erguerão sozinhos, entendem. Bolsonaro e Paulo Guedes afirmaram que vão privatizar e fazer reformas que, certamente, vão acentuar as desigualdades nesse país. Eu, por exemplo, venho de uma família de pessoas humildes. Fiz o curso de Letras graças ao Prouni, criado pelo governo do PT. Estou empregado e exercendo a profissão de professor. E foi assim com milhões de pessoas que tiveram as suas vidas melhoradas. Graciliano Ramos diz “Memórias do Cárcere” que “quem dormiu no chão jamais deve esquecer essa experiência”. Eu já “dormi no chão” – tanto em sentido denotativo quanto em sentido conotativo – e não esqueço essa experiência. Sei de onde venho e entendo que é com políticas sociais sérias que a vida das pessoas passa por uma transformação. 

            É só raciocinar: se o sujeito já deixou claro que não tem nenhum compromisso com as palavras, que a sua personalidade é autoritária, que não possui nenhum autocontrole, quem prova que ele não jogará o país em um caos? 

Não peço para que você vote no PT, mas para que faça uma consideração profunda. O que está em jogo é o futuro da democracia no Brasil. Ela foi conquistada com muito esforço. Pessoas morreram, foram torturadas. A Constituição que temos trouxe uma série de avanços para o nosso país. É preciso respeitá-la. Defendê-la. Aqueles que amam o país precisam resistir. Não se muda um país com bravatas e falas autoritárias. É preciso que haja diálogo. Concessões. Esse é o grande desafio da democracia. É preciso respeitar o diferente e não impor a sua vontade à força.

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