"O que é "real"? Como você define o "real"? Se está falando do que consegue sentir, do que pode cheirar, provar, ver, então "real" são simplesmente sinais elétricos interpretados pelo cérebro".
Morpheus, personagem do filme Matrix
O que é a realidade? Tudo o que vemos é real? Como sei que existo e que aquilo
que vejo e penso encontra ressonâncias com a materialidade? A nossa percepção
do mundo não é fruto de um sonho? Essas perguntas perturbam e inquietam o ser
humano há milênios. Os gregos foram os primeiros a tentarem responder essas
perguntas.
Em 1999, as irmãs Wachowski deram ao mundo uma obra-prima, o filme Matrix.
Eles lançariam ainda outros dois, constituindo uma trilogia. A obra se fixa no
rol daquelas distopias imortais como o são “2001: uma odisseia no espaço”
(1969) e “Blade Runner – o caçador de androides” (1983). Matrix é uma distopia
repleta de referências à filosofia, à mitologia, à teologia e a toda uma
parafernália derivada da cibercultura. Particularmente, já devo ter assistido
ao filme umas oito vezes. Cada vez que vejo a obra, atento para um detalhe
ignorado.
“O que é Matrix?” Essa pergunta encontra eco no questionamento
fundamental: “o que é realidade?” Entendemos que a realidade abarca tudo aquilo
que vemos, experimentamos, sentimos. Somos mediados pelos sentidos, que criam
em nós, uma estrutura sólida da realidade. É a partir dessa referência que
sedimentamos a nossa relação com o mundo que nos cerca. Mas, e se descobríssemos
que aquilo que vemos, sentimos e experimentamos não é real?
É justamente o personagem Thomas Anderson que começa a fazer esse
questionamento. Anderson é um hacker.
Trabalha numa empresa que desenvolve softwares.
À noite, Anderson, que se assume como Neo no mundo cibernético, acessa os
códigos da Matrix. E, assim, começa a desconfiar do mundo em que vive. Não
consegue dormir. É perturbado por inquietações variadas. Neo, por fim, entra em
contato com a personagem Morpheus, uma lenda do mundo virtual. Na mitologia
grega, Morfeu é o deus dos sonhos. A entidade, cujo nome em grego “morpheu”
significa a forma”, que possui a capacidade de se transformar em qualquer coisa
e aparecer nos sonhos das pessoas. Morfeu é entidade sorrateira. Possui asas
que não emitem som enquanto ruflam e deslizam suavemente.
Em Matrix, Anderson é despertado
por Morpheus. É Morpheus quem o tira do mundo do sono, da ilusão, da
virtualidade. Anderson vivia em mundo de fantasia, antes de se tornar Neo (o
novo), “o escolhido”. Vivia dentro da Matrix. Seguindo esse entendimento,
Matrix é uma realidade ilusória, uma realidade programada pelas máquinas.
Segundo Morpheus, os homens iniciaram uma guerra contra as máquinas e
perderam. Foram, por isso, evacuados do mundo. Passaram a viver em Zion (Sião),
uma espécie de referência à Terra Santa, ao monte Sinai, onde supostamente,
segundo o Velho Testamento, Javé apareceu para Moisés. Desde a guerra, o céu
tornou-se escuro. Nuvens grossas e pesadas impedem que a luz do sol incida
sobre a superfície. Sem luz solar, as máquinas não conseguem extrair energia
necessária para alimentarem os sistemas existentes. Elas precisam de uma fonte
alternativa de energia térmica. Passaram, pois, a cultivar seres humanos em
série para que estes produzissem, por meio do calor corporal, bioeletricidade. Milhões
de corpos são mantidos em sono perpétuo, sem que tenham exata consciência de
sua real condição.
Em uma das cenas do filme, Morpheus mostra para Neo duas pílulas - uma azul e outra vermelha. A azul permitiria a Neo continuar vivendo na escuridão, na ilusão; conduzia a sua vida normalmente na Matrix. Casaria. Teria filhos caso desejasse. Tocaria a sua vida. Desenvolveria suas atividades, sem qualquer preocupação. Já a pílula vermelho daria a ele a percepção do mundo real. Ele seria tirado do mundo das aparências. Despertaria para o mundo que o cerca. Perceberia a grande ilusão que o ladeava. Neo escolheu a pílula vermelha.
A grande questão é que há referências claras à “Alegoria da Caverna”, de
Platão. No livro 7, de A República, Platão narra a história de
alguns prisioneiros que foram amarrados desde o nascimento no fundo de uma
caverna. A condição dos prisioneiros é de tão grande passividade, que tudo que
chega a eles, vem por intermédio de sombras e sonoridades confusas. Atrás
deles, fica a saída da caverna em um plano inclinado. Há ainda uma fogueira
acesa que projeta as sombras. Do lado de fora, as pessoas passam. A vida
acontece em toda a sua plenitude. O sol brilha. As pessoas transitam
desimpedidas. Dentro da caverna, a realidade é deformada. Chegam sombras
tortas. O fogo bruxuleia por causa do vento. E, ao passo que isso ocorre, a
projeção ganha contornos estranhos. A luz do sol não chega. Se essas pessoas
estão ali desde que adquiriram consciência, é natural que elas entendam que
toda a realidade que existe se limite ao que elas veem e escutam.
Provocativamente, Platão diz que, após muito esforço, um dos prisioneiros
consegue se libertar. Seu primeiro ato é se acostumar com a nova posição. Seus
músculos e articulações estão atrofiados. Mal consegue se equilibrar. Caminha
trôpego até o plano inclinado da caverna. Olha para trás, visualiza a fogueira,
os companheiros manietados, as sombras fantasmagóricas que dançam nas paredes
nuas da caverna. Faz um esforço. Galga a rampa. Um facho impetuoso de luz
inunda-lhe os olhos. Quase fica cego. A luminosidade parece possuir espetos.
Verruma-lhe os olhos. Em uma das cenas do filme, após sair da Matrix, Neo diz
para Morpheus: “Os meus olhos doem”, ao que Morpheus retruca: “É por que você
nunca os usou”.
Após enxergar o mundo e sua diversidade; perceber os parques; a força e a
grandeza magnânima do mar; escutar os sons múltiplos da natureza, o homem
decide voltar para contar tudo aos seus antigos companheiros. É sua obrigação,
entende. Fora da caverna está o mundo real com sua diversidade e complexidade. Precisa voltar e explanar as sempiternas novidades.
Ele assim o faz. Narra cada pormenor. Descreve o mundo e suas cores. As
vozes. A dança frenética da realidade, banhada pela luminosidade do sol. Mas,
grande foi o seu susto. Os antigos companheiros se recusam a aceitar tão
aberrante e destoante notícia. Aquilo era um embuste. Uma mentira. Não existia
nada daquilo. Tratava-se de uma invenção. A realidade, conforme eles entendiam
de forma absoluta, resumia-se cabalmente àquilo que eles viam refletido no
fundo da caverna. Em um dos diálogos do filme, Morpheus leva Neo a um grande centro
metropolitano e diz:
“A Matrix é um sistema, Neo. Esse
sistema é nosso inimigo. Mas, quando estamos dentro dele, o que vemos? Homens
de negócio, professores, advogados, marceneiros. As mesmas pessoas que queremos
salvar. Mas até conseguimos, essas pessoas fazem parte desse sistema e isso faz
delas nossas inimigas. Você precisa entender que a maior parte dessas pessoas
não estão prontas para acordar. E muitos estão tão inertes, tão dependentes do
sistema, que vão lutar para protegê-lo”.
Os códigos que estruturam a realidade e fazem Matrix |
Nota-se com isso, a estreita intertextualidade do filme com a alegoria
escrita por Platão. Vale ressaltar que a alegoria pretende, por meio de
simbolismos, retratar uma metáfora que acaba ganhando materialidade. Ou seja,
cada elemento da alegoria estabelece conexão com o mundo material. Matrix
aponta para esse intricado debate: até que ponto sabemos que aquilo que vemos,
percebemos e ouvimos é verdadeiro? Outra questão é a defesa de determinadas
premissas. As convicções surgem da experiência. Acostumamo-nos com a realidade
que nos é apresentada. Entendemos que toda ela é inquestionável. O menor questionamento,
a mais insignificante relativização, já é vista como motivo para provocação. E
se nós, à semelhança dos prisioneiros, estivermos acorrentados, contaminados
pela sonoridade falha; e se apreendermos um tipo de mundo, sem que este seja
necessariamente a realidade que achamos que é?
O ser humano precisa de estabilidade. É, por isso, que se faz a defesa
intransigente de certas convicções. Para aquele que possui, nada é tão verdadeiro,
nada faz tanto sentido. Mas, e se essas convicções forem apenas sombras? O
papel do filósofo ou daquele que foge da tirania do olhar único é sempre
transgressor. O papel daquele reflete, que pensa, que desconfia, que procura
sair da caverna dos preconceitos e da aparência é sempre de transgressão. Lênin
costumava dizer que “a verdade é revolucionária”.
Existem outros elementos no filme suficientes para produzir teses. O fato
é que fico impressionado todas às vezes que assisto ao filme. Por exemplo, no
campo da religião há referências a dogmas cristãos. Neo é “o messias”, o
salvador, aquele que traria redenção à raça humana condenada. Ele é o
libertador. Arrancaria os homens de um mundo em que eles nada são a fim de se
tornarem aquilo que devem ser. Paulo, o apóstolo, diz na sua segunda carta aos
coríntios diz que “se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas velhas
passaram e tudo se fez novo”. Percebe-se aqui o quanto o filme procura
estabelecer a mudança perpetrada pela relação com o messias.
Outra referência curiosa é o dogma da Trindade. A personagem “Trinity”
possui relação. A primeira vez que ela se encontra com
Neo, ele diz: “Achei que você fosse um homem”. Ela responde: “Todos acham
isso”. Quando da morte de Neo, ela o ressuscita. Pai, Filho e Espírito Santo
são um. Se o filho ressuscita, o Pai e o Espírito ressuscitam, ou seja, a
própria trindade ressuscita.
Em suma: o filme é uma obra bastante incomum. Os irmãos Wachowski
conseguiram trabalhar conceitos extremamente complexos e inovaram bastante no
campo visual. O filme é um grande acontecimento. É um prato feito para aqueles
que admiram filmes polifônicos, ou seja, que conseguem perturbar por aquilo que
insinuam, seja de maneira direta ou indireta.
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