quinta-feira, janeiro 24, 2019

Matrix e o mundo real

"O que é "real"? Como você define o "real"? Se está falando do que consegue sentir, do que pode cheirar, provar, ver, então "real" são simplesmente sinais elétricos interpretados pelo cérebro".
 Morpheus, personagem do filme Matrix

O que é a realidade? Tudo o que vemos é real? Como sei que existo e que aquilo que vejo e penso encontra ressonâncias com a materialidade? A nossa percepção do mundo não é fruto de um sonho? Essas perguntas perturbam e inquietam o ser humano há milênios. Os gregos foram os primeiros a tentarem responder essas perguntas.  

Em 1999, as irmãs Wachowski deram ao mundo uma obra-prima, o filme Matrix. Eles lançariam ainda outros dois, constituindo uma trilogia. A obra se fixa no rol daquelas distopias imortais como o são “2001: uma odisseia no espaço” (1969) e “Blade Runner – o caçador de androides” (1983). Matrix é uma distopia repleta de referências à filosofia, à mitologia, à teologia e a toda uma parafernália derivada da cibercultura. Particularmente, já devo ter assistido ao filme umas oito vezes. Cada vez que vejo a obra, atento para um detalhe ignorado. 

“O que é Matrix?” Essa pergunta encontra eco no questionamento fundamental: “o que é realidade?” Entendemos que a realidade abarca tudo aquilo que vemos, experimentamos, sentimos. Somos mediados pelos sentidos, que criam em nós, uma estrutura sólida da realidade. É a partir dessa referência que sedimentamos a nossa relação com o mundo que nos cerca. Mas, e se descobríssemos que aquilo que vemos, sentimos e experimentamos não é real?  

É justamente o personagem Thomas Anderson que começa a fazer esse questionamento. Anderson é um hacker. Trabalha numa empresa que desenvolve softwares. À noite, Anderson, que se assume como Neo no mundo cibernético, acessa os códigos da Matrix. E, assim, começa a desconfiar do mundo em que vive. Não consegue dormir. É perturbado por inquietações variadas. Neo, por fim, entra em contato com a personagem Morpheus, uma lenda do mundo virtual. Na mitologia grega, Morfeu é o deus dos sonhos. A entidade, cujo nome em grego “morpheu” significa a forma”, que possui a capacidade de se transformar em qualquer coisa e aparecer nos sonhos das pessoas. Morfeu é entidade sorrateira. Possui asas que não emitem som enquanto ruflam e deslizam suavemente. 

Em Matrix, Anderson  é despertado por Morpheus. É Morpheus quem o tira do mundo do sono, da ilusão, da virtualidade. Anderson vivia em mundo de fantasia, antes de se tornar Neo (o novo), “o escolhido”. Vivia dentro da Matrix. Seguindo esse entendimento, Matrix é uma realidade ilusória, uma realidade programada pelas máquinas. 

Segundo Morpheus, os homens iniciaram uma guerra contra as máquinas e perderam. Foram, por isso, evacuados do mundo. Passaram a viver em Zion (Sião), uma espécie de referência à Terra Santa, ao monte Sinai, onde supostamente, segundo o Velho Testamento, Javé apareceu para Moisés. Desde a guerra, o céu tornou-se escuro. Nuvens grossas e pesadas impedem que a luz do sol incida sobre a superfície. Sem luz solar, as máquinas não conseguem extrair energia necessária para alimentarem os sistemas existentes. Elas precisam de uma fonte alternativa de energia térmica. Passaram, pois, a cultivar seres humanos em série para que estes produzissem, por meio do calor corporal, bioeletricidade. Milhões de corpos são mantidos em sono perpétuo, sem que tenham exata consciência de sua real condição. 

Em uma das cenas do filme, Morpheus mostra para Neo duas pílulas - uma azul e outra vermelha. A azul permitiria a Neo continuar vivendo na escuridão, na ilusão; conduzia a sua vida normalmente na Matrix. Casaria. Teria filhos caso desejasse. Tocaria a sua vida. Desenvolveria suas atividades, sem qualquer preocupação. Já a pílula vermelho daria a ele a percepção do mundo real. Ele seria tirado do mundo das aparências. Despertaria para o mundo que o cerca. Perceberia a grande ilusão que o ladeava. Neo escolheu a pílula vermelha.

A grande questão é que há referências claras à “Alegoria da Caverna”, de Platão.  No livro 7, de A República, Platão narra a história de alguns prisioneiros que foram amarrados desde o nascimento no fundo de uma caverna. A condição dos prisioneiros é de tão grande passividade, que tudo que chega a eles, vem por intermédio de sombras e sonoridades confusas. Atrás deles, fica a saída da caverna em um plano inclinado. Há ainda uma fogueira acesa que projeta as sombras. Do lado de fora, as pessoas passam. A vida acontece em toda a sua plenitude. O sol brilha. As pessoas transitam desimpedidas. Dentro da caverna, a realidade é deformada. Chegam sombras tortas. O fogo bruxuleia por causa do vento. E, ao passo que isso ocorre, a projeção ganha contornos estranhos. A luz do sol não chega. Se essas pessoas estão ali desde que adquiriram consciência, é natural que elas entendam que toda a realidade que existe se limite ao que elas veem e escutam. 

Provocativamente, Platão diz que, após muito esforço, um dos prisioneiros consegue se libertar. Seu primeiro ato é se acostumar com a nova posição. Seus músculos e articulações estão atrofiados. Mal consegue se equilibrar. Caminha trôpego até o plano inclinado da caverna. Olha para trás, visualiza a fogueira, os companheiros manietados, as sombras fantasmagóricas que dançam nas paredes nuas da caverna. Faz um esforço. Galga a rampa. Um facho impetuoso de luz inunda-lhe os olhos. Quase fica cego. A luminosidade parece possuir espetos. Verruma-lhe os olhos. Em uma das cenas do filme, após sair da Matrix, Neo diz para Morpheus: “Os meus olhos doem”, ao que Morpheus retruca: “É por que você nunca os usou”.

Após enxergar o mundo e sua diversidade; perceber os parques; a força e a grandeza magnânima do mar; escutar os sons múltiplos da natureza, o homem decide voltar para contar tudo aos seus antigos companheiros. É sua obrigação, entende. Fora da caverna está o mundo real com sua diversidade e complexidade. Precisa voltar e explanar as sempiternas novidades. 

Ele assim o faz. Narra cada pormenor. Descreve o mundo e suas cores. As vozes. A dança frenética da realidade, banhada pela luminosidade do sol. Mas, grande foi o seu susto. Os antigos companheiros se recusam a aceitar tão aberrante e destoante notícia. Aquilo era um embuste. Uma mentira. Não existia nada daquilo. Tratava-se de uma invenção. A realidade, conforme eles entendiam de forma absoluta, resumia-se cabalmente àquilo que eles viam refletido no fundo da caverna. Em um dos diálogos do filme, Morpheus leva Neo a um grande centro metropolitano e diz: 

“A Matrix é um sistema, Neo. Esse sistema é nosso inimigo. Mas, quando estamos dentro dele, o que vemos? Homens de negócio, professores, advogados, marceneiros. As mesmas pessoas que queremos salvar. Mas até conseguimos, essas pessoas fazem parte desse sistema e isso faz delas nossas inimigas. Você precisa entender que a maior parte dessas pessoas não estão prontas para acordar. E muitos estão tão inertes, tão dependentes do sistema, que vão lutar para protegê-lo”. 
Os códigos que estruturam a realidade e fazem Matrix

Nota-se com isso, a estreita intertextualidade do filme com a alegoria escrita por Platão. Vale ressaltar que a alegoria pretende, por meio de simbolismos, retratar uma metáfora que acaba ganhando materialidade. Ou seja, cada elemento da alegoria estabelece conexão com o mundo material. Matrix aponta para esse intricado debate: até que ponto sabemos que aquilo que vemos, percebemos e ouvimos é verdadeiro? Outra questão é a defesa de determinadas premissas. As convicções surgem da experiência. Acostumamo-nos com a realidade que nos é apresentada. Entendemos que toda ela é inquestionável. O menor questionamento, a mais insignificante relativização, já é vista como motivo para provocação. E se nós, à semelhança dos prisioneiros, estivermos acorrentados, contaminados pela sonoridade falha; e se apreendermos um tipo de mundo, sem que este seja necessariamente a realidade que achamos que é?

O ser humano precisa de estabilidade. É, por isso, que se faz a defesa intransigente de certas convicções. Para aquele que possui, nada é tão verdadeiro, nada faz tanto sentido. Mas, e se essas convicções forem apenas sombras? O papel do filósofo ou daquele que foge da tirania do olhar único é sempre transgressor. O papel daquele reflete, que pensa, que desconfia, que procura sair da caverna dos preconceitos e da aparência é sempre de transgressão. Lênin costumava dizer que “a verdade é revolucionária”. 

Existem outros elementos no filme suficientes para produzir teses. O fato é que fico impressionado todas às vezes que assisto ao filme. Por exemplo, no campo da religião há referências a dogmas cristãos. Neo é “o messias”, o salvador, aquele que traria redenção à raça humana condenada. Ele é o libertador. Arrancaria os homens de um mundo em que eles nada são a fim de se tornarem aquilo que devem ser. Paulo, o apóstolo, diz na sua segunda carta aos coríntios diz que “se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas velhas passaram e tudo se fez novo”. Percebe-se aqui o quanto o filme procura estabelecer a mudança perpetrada pela relação com o messias. 

Outra referência curiosa é o dogma da Trindade. A personagem “Trinity” possui relação. A primeira vez que ela se encontra com Neo, ele diz: “Achei que você fosse um homem”. Ela responde: “Todos acham isso”. Quando da morte de Neo, ela o ressuscita. Pai, Filho e Espírito Santo são um. Se o filho ressuscita, o Pai e o Espírito ressuscitam, ou seja, a própria trindade ressuscita. 

Em suma: o filme é uma obra bastante incomum. Os irmãos Wachowski conseguiram trabalhar conceitos extremamente complexos e inovaram bastante no campo visual. O filme é um grande acontecimento. É um prato feito para aqueles que admiram filmes polifônicos, ou seja, que conseguem perturbar por aquilo que insinuam, seja de maneira direta ou indireta.

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