quinta-feira, janeiro 03, 2019

O homem medíocre

Trecho do artigo escrito por Eliane Brum para o El Pais:

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"Os direitos de gênero, classe e raça estão conectados. O reconhecimento destes direitos e a ampliação do acesso dos negros a espaços até então reservados aos brancos teve grande impacto no resultado eleitoral e também no antipetismo. O ódio dos bolsonaristas se expressa não na ação, mas na reação: a de quem se defende do que acredita ser um ataque. Também por isso sentem ser legítimo lançar as piores e mais violentas palavras contra o outro. Acreditavam – e ainda acreditam – estar apenas se defendendo, o que na sua visão de mundo justificaria qualquer violência. Também por isso o outro é inimigo – e não opositor.

Mas qual é o ataque que acreditam estar sofrendo? A suspensão de privilégios que consideravam direitos, acirrada pelo desamparo que uma crise econômica e a ameaça de desemprego provocam. Era gente – principalmente homens, heterossexuais e brancos – que nos últimos anos via o chão desaparecer debaixo dos seus pés. Excluídos das elites intelectuais, pressionados a ser “politicamente corretos” porque outros saberiam mais do que eles, ridicularizados na sua macheza fora de época, assombrados por mulheres até mesmo dentro de casa, reagem. Como se sentem fracos, reagem com força desproporcional.

Esses brasileiros não querem um homem melhor do que eles na presidência. O que querem é um homem igual a eles no governo. Numa época em que até as metáforas se literalizaram, Bolsonaro lhes devolve – literalmente – aquilo que sentem que lhes foi tirado. Ao assumir o poder, Bolsonaro mostra que a ordem do mundo volta ao “normal”. Com Bolsonaro, eles voltam também ao Governo de suas próprias vidas, sem serem questionados nem precisarem ser questionados sobre temas tão espinhosos como, por exemplo, a sexualidade e seu lugar na família e na sociedade.

São principalmente homens, mas também são mulheres que sentem que a opressão é um preço baixo a pagar para voltar a um território que, mesmo asfixiante, é conhecido e supostamente mais seguro num mundo movediço. São brasileiros que pertencem a diferentes religiões, mas a votação mais expressiva recebida por Bolsonaro foi entre os evangélicos. As igrejas evangélicas neopentecostais têm multiplicado o número de fiéis e aumentado sua representação no Congresso nos últimos anos, encarnando uma das mais importantes mudanças culturais – e políticas – do Brasil.

Como disse Bolsonaro em seu discurso às massas, logo após ser ungido com a faixa presidencial: “Não podemos deixar que ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros. Ideologias que destroem nossos valores e tradições, destroem nossas famílias, alicerce da nossa sociedade. Podemos, eu, você e as nossas famílias, todos juntos, reestabelecer padrões éticos e morais que transformarão nosso Brasil”.

omo se sentiam burros diante da intelectualidade acadêmica que sempre lhes torceu o nariz pontudo, os bolsonaristas adotaram seus próprios intelectuais. E também foram adotados por eles, como fez Olavo de Carvalho, que graças a isso se tornou um autor best-seller e passou a exercer seu autoproclamado “anarquismo” de forma bastante interessante.

Bolsonaro torna-se então aquele que “não tem medo de dizer o que pensa” ou “aquele que diz a verdade”. Bolsonaro se torna herói porque enfrenta o “politicamente correto” e liberta os sentimentos reprimidos de seus iguais. Eles, que começam a se sentir uns merdas diante de mulheres cada vez mais assertivas e de negros que não aceitam mais um lugar subalterno podem então voltar a mentir sobre privilégios serem direitos – e afirmar que esta é “a verdade”. Bolsonaro prega “transformação”, mas só se elegeu porque sua proposta de “mudança” trabalha com a ilusão do retorno. Essa “nova direita” compreende muito bem os anseios de uma parcela dos homens desesperados desse tempo.

Na tentativa de volta ao passado que já não pode ser, mesmo com Bolsonaro no poder, os privilégios perdidos foram tachados de “ideologia”. Aqueles que ideologizam tudo, até mesmo a orientação sexual e a religião alheias, culpam a ideologia por tudo. Se não gostam dos fatos, como o aquecimento global, convertem-nos em “ideologia marxista”. Transformam “politicamente correto” num palavrão. Qualquer limite torna-se uma afronta à liberdade, em especial a liberdade de ser violento. Chamam todos aqueles que apontam a necessidade de limites de “comunistas” ou “esquerdistas”, como se ambas as palavras significassem uma espécie de pecado capital.

Como sentiam-se oprimidos por conceitos que não compreendiam, os bolsonaristas descobriram que poderiam dar às palavras o significado que lhes conviesse porque o grupo os respaldaria. E, graças às redes sociais, o grupo os respalda. O significado das palavras é dado pelo número de “curtir” nas redes sociais. Esvaziadas de conteúdo, história e consenso, esvaziadas até mesmo das contradições e das disputas, as palavras se tornaram gritos, força bruta.

É assim que um homem medíocre como Bolsonaro vira “mito”. Ameaçados de perder a diferença que lhes garante privilégios que já não podem ter, Bolsonaro e seus seguidores corrompem a realidade e afirmam sua mediocridade como valor. Macho. Branco. Sujeito Homem".

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