Humbert Humbert
Lolita, de Vladimir Nabokov, não é uma obra literária comum.
Certamente, tal definição não clarifica as ressonâncias da obra. O livro é
controverso, de narrativa com passagens nauseantes. Por outro lado, o narrador possui
uma erudição envolvente. Ele deseja nos capturar pela elegância, pelas
blandícias de uma linguagem encharcada de poesia.
O livro Lolita, escrito em 1955, é um evento na vida de Nabokov. O escritor
russo, radicado nos EUA, escreveu o livro em inglês. Sua família havia fugido
da revolução bolchevique, com a qual destoava. Nabokov não encontrou uma
editora que publicasse sua controversa produção literária. Seria literatura ou pornografia?
Por fim, uma editora francesa
acostumada a publicar livros pornográficos, topou o empreendimento. Ou seja, Lolita surgiu para os leitores como uma
obra com caráter pornográfico. Certamente, se esse era o objetivo, os leitores
ficaram decepcionados. As referências à obscenidade, ao libidinoso, estão
encobertos por uma camada grossa de tinta poética. Sabe-se que o narrador faz
menção ao que estamos pensando, mas há um caráter implícito potencializado pela
imaginação de quem ler.
Com o tempo, descobriram-se as
qualidades da obra. Havia ali virtudes de uma obra universal. A literatura é
literatura é capaz de produzir efeitos únicos. Ela fornece, por meio de
verossimilhanças e inverossimilhanças, uma visão mais nítida dos fenômenos que
constituem a vida humana. O que a ciência não é capaz de dizer por possuir
limitações, a literatura não encontra limites; grita alto a plenos pulmões.
A pedofilia é um tema tabu na
sociedade moderna. Segundo a Organização Mundial de Saúde, a pedofilia é uma doença;
um transtorno psicológico. O pedófilo, por tanto, é aquele sujeito que possui
atração sexual por crianças e adolescentes pré-púberes. Não existe o tipo penal
“pedofilia”. Não há uma lei específica que aborde o tema. Ninguém pode ser
punido por ter uma doença. Todavia, quando o pedófilo materializa a sua
patologia, configura-se a tipicidade penal. Nem todo pedófilo é, pois, um
criminoso. É uma questão séria. Não há cura para a pedofilia. O tratamento é clínico.
Vladimir Nabokov (1899-1977) |
O personagem do livro de Nabokov
tem consciência desse fato. Ele premedita situações. É um estrategista minucioso
de como deve proceder para ter a jovem que ele denomina Lolita. A única voz que
escutamos em todo romance é a sua. Sabemos o quanto ele é habilidoso com as
palavras. É um erudito; um catedrático, que explora com destreza a linguagem. O
leitor é conduzido, impelido, como um animal indo ao matadouro, sem dá conta do
fato. Por fim, torna-se simpático à sua lírica enfeitiçante.
Humbert Humbert é um tipo
sarcástico, capaz de produzir um humor muito fino. Ao prestarmos atenção ao seu
palavrório refinado, fica claro o gênio narrativo de Nabokov. Ele possui um
controle absoluto da história. Coisa assim, eu somente havia encontrado em
Machado de Assis. Aliás, há uma correlação de caráter entre Bentinho e Humbert
Humbert. Bentinho é um ciumento, capaz de vislumbrar fantasias; um parcial
sujeito que busca convencer o leitor da culpa de Capitu. Humbert Humbert também
procura deixar evidente a sua obsessão, que chega às raias do desespero.
Diferentemente de Bentinho, ele tem consciência de sua condição. Mas a pergunta
que surge é: As coisas se fizeram como ele conta, de fato? Lolita – parece –
deixa-se dominar pelo minotauro sedento e irracional que é Humbert Humbert. Não
ouvimos a sua voz, senão pela voz do narrador.
É importante entender, longe de
qualquer moralismo, que é uma obra extraordinária. Um dos grandes livros da história
da literatura. Pela temática espinhenta, é comum formularmos uma imagem
defeituosa de Humbert Humbert e, por tabela, do próprio autor da obra. Nabokov
é um gênio. Estava inspiradíssimo a escrever o livro. Era um estudioso que
escrevia textos difíceis, fazia traduções do russo, dava aulas em mais de um
lugar. Ganhava a vida com isso. Lolita deu-lhe fortuna. Tornou-o conhecido. E
alvo de indisposições.
Lolita é uma “crueldade literária”. É belo. O estilo é elegante,
ensolarado. Sentimos o frescor da linguagem. A voz sedutora de H. H. A sua
capacidade de inebriar o leitor é um caso incomum. Por outro lado, o narrador
sabe da zona perigosa em que se encontra. Faz de tudo para criar
sensibilizações naquele que ler, que atua como juiz para escrutinar a sua
insaciável obsessão.
1. O jornal espanhol El Pais, o ano passado, trouxe uma reportagem que fazia referência ao caso de Sally Horner, sequestrada e maltratada por um pedófilo e que teria inspirado Nabokov.
2. Em 1962, Stanley Kubrick produziu o filme Lolita, com roteiro do próprio Nabokov.
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