quinta-feira, janeiro 31, 2019

Notas sobre “Zelota - a vida e a época de Jesus de Nazaré", de Reza Aslam. II

Tiago é um dos nomes mais importantes da história da Igreja cristã. Após a morte de Jesus, Tiago assumiu a liderança entre os seguidores do “rei dos judeus”. Sua posição de irmão de Jesus deu a ele supostas prerrogativas. O livro de Atos, em seus capítulos iniciais, deixa evidente essa autoridade. Tiago era conhecido como “o justo”, por causa do seu forte senso de verdade e justiça, principalmente para com os mais pobres. 

A teologia de Tiago diverge daquela ensinada por Paulo. Há ressonâncias claras dos ensinamentos de Jesus em seus textos. O curioso é que a liderança de Tiago vai perdendo o protagonismo ao longo das décadas da história da Igreja. No Novo Testamento, há uma carta atribuída à sua pessoa. Certamente, ele não a escreveu. Tiago morreu da década de 60 d. C. e a carta foi escrita entre 80 e 90 d.C. Alguém a redigiu levando em conta o substrato dos seus ensinamentos. Embora não tenha escrito a carta,  conseguimos ouvir a sua voz. A carta é uma paráfrase do seu modo de pensar. É mais fácil chegar a uma teologia que esteja alinhada com o Jesus histórico por intermédio de Tiago, do que por intermédio de Paulo.

A tradição tem identificado, baseado em Mt. 16.16, que Pedro é o patrono da igreja cristã, sendo, inclusive, o seu primeiro papa. Há um panorama lógico que pode explicar esse fato: com a consolidação da relação da igreja com o estado romano, surge a Igreja Católica. Os poderes delegados da condição de papa estão bem próximos daqueles conferidos ao césar, o líder supremo do Império Romano. O catolicismo evidencia a burocratização da Igreja. Muitas teologias foram consolidadas nesse período histórico – o cânon da Bíblia, a Trindade, a dupla natureza de Cristo etc. Uma dessas teologias é a da virgindade permanente de Maria, a mãe de Jesus. Afirmar que Tiago era irmão sanguíneo de Jesus fazia surgir um problema necessário – Maria não seria virgem. Ou seja, perderia o seu status de “mãe de Deus”; de intercessora, conforme é crido no catolicismo.

Segundo Aslam, há motivos para o desaparecimento de Tiago. Uma vez que a presença de Tiago criava um imbróglio teológico, as lideranças de Pedro e Paulo ganharam robustez. Quando da definição do cânon, treze cartas atribuídas a Paulo foram inseridas. A teologia paulina ganhou em a primazia na estruturação do pensamento cristão. Talvez, hoje, estivéssemos em um mundo completamente diferente, caso a ordem natural dos fatos fossem levados em conta.

segunda-feira, janeiro 28, 2019

Notas sobre “Zelota - a vida e a época de Jesus de Nazaré", de Reza Aslam. I


Alguns comentários feitos a partir da leitura de “Zelota - a vida e a época de Jesus de Nazaré", de Reza Aslam.

1    No geral, Pilatos não realizava entrevistas a prisioneiros. Ele assinava um documento e o prisioneiro era enviado para a crucificação. É inusitadamente estranho que a teatralização descrita nos evangelhos tenha ocorrido. Salvo se os crimes cometidos por Jesus tivessem adquirido um nível de seriedade tal que demandasse a necessidade de entrevista.

2    Um segundo fato que gera estranheza e um quê de ficcionalidade é o julgamento de Jesus. Pilatos era conhecido pela sua indisposição para com os judeus. Ele mandou colocar a imagem de uma águia no templo, símbolo da supremacia romana, em Jerusalém. Apoderou-se dos tesouros do templo para construir o aqueduto da cidade. O insólito da história é perceber, segundo o Evangelho de Marcos (15.1-15), haver um costume durante a festa do Pessach de se soltar um prisioneiro, uma espécie de indulto. Diz o texto atribuído a Mateus, que “por ocasião da festa, costumava o governador soltar um preso, escolhendo o povo aquele que quisesse” (27.15). Não há qualquer registro histórico dessa prática. Além do mais, é estranho que Pilatos pelo seu aspecto e personalidade  o fizesse. Diz Marcos que “Pilatos, querendo contentar a multidão, soltou-lhes Barrabás”. É simplesmente atípico que assim tenha acontecido. A relação de dureza de Pilatos para com os judeus chegou a níveis tão dutos, durante os dez anos do seu governo, que os judeus fizeram uma reclamação a Roma. “Contentar”, “agradar”, não eram verbos típicos das ações do governador romano. A narrativa desse ponto de vista é patentemente fictícia. Não haveria possibilidade de Pilatos interferir ou se ocupar com os ritos e costumes da cultura religiosa dos judeus. Afirmar que Jesus esteve na presença de Pilatos não é impossível. Talvez, se fosse um crime extraordinário que assumisse dimensões de grande repercussão, de enorme significação.

3      A descrição do julgamento perante o Sinédrio demonstra o quanto os evangelistas desconheciam a lei judaica. A Mishna traz os ritos necessários a qualquer julgamento e eles não eram aplicados em 30 d.C, quando se deu a crucificação de Jesus. O Sinédrio não se reunia em locais informais (pátio); não se reunia durante o Pessach; não se reunia à noite; não se reunia durante o Sabath.

4.     Outro aspecto bastante curioso o fato de os evangelistas criarem uma imagem de Pilatos como se este fosse completamente neutro, não tivesse necessariamente responsabilidade com a morte de Jesus. Os evangelhos se analisados por uma gradação (do mais antigo para o mais recente), possuem uma evolução de responsabilidade. Quanto mais tardia é a narrativa, menor é a culpa do governador romano. O mais antigo dos evangelhos é o atribuído a Marcos. Nota-se que Pilatos realiza a vontade da multidão, incitada “pelos principais sacerdotes”. Ato contínuo, Pilatos procura “contentar” a multidão; solta Barrabás; manda açoitar Jesus e, em seguida, entrega-o para ser crucificado. Em Mateus, nota-se que até mesmo a mulher do governador pede para que ele não se “envolvesse com aquele justo”. Pilatos para explicitar a sua não participação na morte do “justo”, lava as mãos num gesto simbólico. O povo adensa ainda mais a responsabilidade. Chama para si a culpa, deixando implícita a ideia de que até mesmo os próprios filhos seriam co-responsabilizados para todo sempre. Lucas afirma que Jesus esteve em duas ocasiões na presença de Pilatos. E até mesmo Herodes Antipas lhe era simpático. O evangelista delibera que era “desejo de Pilatos soltar Jesus”, todavia o povo em uníssono, gritava: “Crucifica-o!” “Crucifica-o!” Pilatos tem, assim, a sua vontade contrariada – logo Pilatos!  João, o último evangelho a ser escrito, possivelmente em uma data próxima de 100 d. C., avança na tentativa de culpabilizar os judeus e tirar a responsabilidade de Pilatos e, assim fazendo, a responsabilidade do estado romano. Os romanos seriam apenas instrumentos do ódio empedernido dos judeus. João afirma que o governador ficou “atemorizado”, após saber que os judeus que acusavam tinham uma lei; que Jesus deveria morrer “porque a si mesmo se fez filho de Deus”. É estranha a afirmação do evangelista. Pilatos era uma autoridade romana, alguém que fora colocado no poder pelo próprio imperador. Atemorizar-se com a declaração era, simplesmente, deixar claro a dubiedade da autoridade de Pilatos. Outro fato estranho é a afirmação que soaria blasfema para qualquer judeu do I século. Pilatos pergunta: “Hei de crucificar o vosso rei?” Os “principais sacerdotes” respondem num gesto inusual: “Não temos rei, senão César”. Tal declaração destoa daquilo que a história evidencia. Reconhecer que “César era o único rei” significava comprometer a identidade religiosa dos judeus. Se existe algo que identifica o povo de Israel é a defesa intransigente de sua religião. Não existe outra autoridade além de Javé. Havia um zelo fundamental, uma necessidade constante de reconhecer a soberania da autoridade divina.

quinta-feira, janeiro 24, 2019

Matrix e o mundo real

"O que é "real"? Como você define o "real"? Se está falando do que consegue sentir, do que pode cheirar, provar, ver, então "real" são simplesmente sinais elétricos interpretados pelo cérebro".
 Morpheus, personagem do filme Matrix

O que é a realidade? Tudo o que vemos é real? Como sei que existo e que aquilo que vejo e penso encontra ressonâncias com a materialidade? A nossa percepção do mundo não é fruto de um sonho? Essas perguntas perturbam e inquietam o ser humano há milênios. Os gregos foram os primeiros a tentarem responder essas perguntas.  

Em 1999, as irmãs Wachowski deram ao mundo uma obra-prima, o filme Matrix. Eles lançariam ainda outros dois, constituindo uma trilogia. A obra se fixa no rol daquelas distopias imortais como o são “2001: uma odisseia no espaço” (1969) e “Blade Runner – o caçador de androides” (1983). Matrix é uma distopia repleta de referências à filosofia, à mitologia, à teologia e a toda uma parafernália derivada da cibercultura. Particularmente, já devo ter assistido ao filme umas oito vezes. Cada vez que vejo a obra, atento para um detalhe ignorado. 

“O que é Matrix?” Essa pergunta encontra eco no questionamento fundamental: “o que é realidade?” Entendemos que a realidade abarca tudo aquilo que vemos, experimentamos, sentimos. Somos mediados pelos sentidos, que criam em nós, uma estrutura sólida da realidade. É a partir dessa referência que sedimentamos a nossa relação com o mundo que nos cerca. Mas, e se descobríssemos que aquilo que vemos, sentimos e experimentamos não é real?  

É justamente o personagem Thomas Anderson que começa a fazer esse questionamento. Anderson é um hacker. Trabalha numa empresa que desenvolve softwares. À noite, Anderson, que se assume como Neo no mundo cibernético, acessa os códigos da Matrix. E, assim, começa a desconfiar do mundo em que vive. Não consegue dormir. É perturbado por inquietações variadas. Neo, por fim, entra em contato com a personagem Morpheus, uma lenda do mundo virtual. Na mitologia grega, Morfeu é o deus dos sonhos. A entidade, cujo nome em grego “morpheu” significa a forma”, que possui a capacidade de se transformar em qualquer coisa e aparecer nos sonhos das pessoas. Morfeu é entidade sorrateira. Possui asas que não emitem som enquanto ruflam e deslizam suavemente. 

Em Matrix, Anderson  é despertado por Morpheus. É Morpheus quem o tira do mundo do sono, da ilusão, da virtualidade. Anderson vivia em mundo de fantasia, antes de se tornar Neo (o novo), “o escolhido”. Vivia dentro da Matrix. Seguindo esse entendimento, Matrix é uma realidade ilusória, uma realidade programada pelas máquinas. 

Segundo Morpheus, os homens iniciaram uma guerra contra as máquinas e perderam. Foram, por isso, evacuados do mundo. Passaram a viver em Zion (Sião), uma espécie de referência à Terra Santa, ao monte Sinai, onde supostamente, segundo o Velho Testamento, Javé apareceu para Moisés. Desde a guerra, o céu tornou-se escuro. Nuvens grossas e pesadas impedem que a luz do sol incida sobre a superfície. Sem luz solar, as máquinas não conseguem extrair energia necessária para alimentarem os sistemas existentes. Elas precisam de uma fonte alternativa de energia térmica. Passaram, pois, a cultivar seres humanos em série para que estes produzissem, por meio do calor corporal, bioeletricidade. Milhões de corpos são mantidos em sono perpétuo, sem que tenham exata consciência de sua real condição. 

Em uma das cenas do filme, Morpheus mostra para Neo duas pílulas - uma azul e outra vermelha. A azul permitiria a Neo continuar vivendo na escuridão, na ilusão; conduzia a sua vida normalmente na Matrix. Casaria. Teria filhos caso desejasse. Tocaria a sua vida. Desenvolveria suas atividades, sem qualquer preocupação. Já a pílula vermelho daria a ele a percepção do mundo real. Ele seria tirado do mundo das aparências. Despertaria para o mundo que o cerca. Perceberia a grande ilusão que o ladeava. Neo escolheu a pílula vermelha.

A grande questão é que há referências claras à “Alegoria da Caverna”, de Platão.  No livro 7, de A República, Platão narra a história de alguns prisioneiros que foram amarrados desde o nascimento no fundo de uma caverna. A condição dos prisioneiros é de tão grande passividade, que tudo que chega a eles, vem por intermédio de sombras e sonoridades confusas. Atrás deles, fica a saída da caverna em um plano inclinado. Há ainda uma fogueira acesa que projeta as sombras. Do lado de fora, as pessoas passam. A vida acontece em toda a sua plenitude. O sol brilha. As pessoas transitam desimpedidas. Dentro da caverna, a realidade é deformada. Chegam sombras tortas. O fogo bruxuleia por causa do vento. E, ao passo que isso ocorre, a projeção ganha contornos estranhos. A luz do sol não chega. Se essas pessoas estão ali desde que adquiriram consciência, é natural que elas entendam que toda a realidade que existe se limite ao que elas veem e escutam. 

Provocativamente, Platão diz que, após muito esforço, um dos prisioneiros consegue se libertar. Seu primeiro ato é se acostumar com a nova posição. Seus músculos e articulações estão atrofiados. Mal consegue se equilibrar. Caminha trôpego até o plano inclinado da caverna. Olha para trás, visualiza a fogueira, os companheiros manietados, as sombras fantasmagóricas que dançam nas paredes nuas da caverna. Faz um esforço. Galga a rampa. Um facho impetuoso de luz inunda-lhe os olhos. Quase fica cego. A luminosidade parece possuir espetos. Verruma-lhe os olhos. Em uma das cenas do filme, após sair da Matrix, Neo diz para Morpheus: “Os meus olhos doem”, ao que Morpheus retruca: “É por que você nunca os usou”.

Após enxergar o mundo e sua diversidade; perceber os parques; a força e a grandeza magnânima do mar; escutar os sons múltiplos da natureza, o homem decide voltar para contar tudo aos seus antigos companheiros. É sua obrigação, entende. Fora da caverna está o mundo real com sua diversidade e complexidade. Precisa voltar e explanar as sempiternas novidades. 

Ele assim o faz. Narra cada pormenor. Descreve o mundo e suas cores. As vozes. A dança frenética da realidade, banhada pela luminosidade do sol. Mas, grande foi o seu susto. Os antigos companheiros se recusam a aceitar tão aberrante e destoante notícia. Aquilo era um embuste. Uma mentira. Não existia nada daquilo. Tratava-se de uma invenção. A realidade, conforme eles entendiam de forma absoluta, resumia-se cabalmente àquilo que eles viam refletido no fundo da caverna. Em um dos diálogos do filme, Morpheus leva Neo a um grande centro metropolitano e diz: 

“A Matrix é um sistema, Neo. Esse sistema é nosso inimigo. Mas, quando estamos dentro dele, o que vemos? Homens de negócio, professores, advogados, marceneiros. As mesmas pessoas que queremos salvar. Mas até conseguimos, essas pessoas fazem parte desse sistema e isso faz delas nossas inimigas. Você precisa entender que a maior parte dessas pessoas não estão prontas para acordar. E muitos estão tão inertes, tão dependentes do sistema, que vão lutar para protegê-lo”. 
Os códigos que estruturam a realidade e fazem Matrix

Nota-se com isso, a estreita intertextualidade do filme com a alegoria escrita por Platão. Vale ressaltar que a alegoria pretende, por meio de simbolismos, retratar uma metáfora que acaba ganhando materialidade. Ou seja, cada elemento da alegoria estabelece conexão com o mundo material. Matrix aponta para esse intricado debate: até que ponto sabemos que aquilo que vemos, percebemos e ouvimos é verdadeiro? Outra questão é a defesa de determinadas premissas. As convicções surgem da experiência. Acostumamo-nos com a realidade que nos é apresentada. Entendemos que toda ela é inquestionável. O menor questionamento, a mais insignificante relativização, já é vista como motivo para provocação. E se nós, à semelhança dos prisioneiros, estivermos acorrentados, contaminados pela sonoridade falha; e se apreendermos um tipo de mundo, sem que este seja necessariamente a realidade que achamos que é?

O ser humano precisa de estabilidade. É, por isso, que se faz a defesa intransigente de certas convicções. Para aquele que possui, nada é tão verdadeiro, nada faz tanto sentido. Mas, e se essas convicções forem apenas sombras? O papel do filósofo ou daquele que foge da tirania do olhar único é sempre transgressor. O papel daquele reflete, que pensa, que desconfia, que procura sair da caverna dos preconceitos e da aparência é sempre de transgressão. Lênin costumava dizer que “a verdade é revolucionária”. 

Existem outros elementos no filme suficientes para produzir teses. O fato é que fico impressionado todas às vezes que assisto ao filme. Por exemplo, no campo da religião há referências a dogmas cristãos. Neo é “o messias”, o salvador, aquele que traria redenção à raça humana condenada. Ele é o libertador. Arrancaria os homens de um mundo em que eles nada são a fim de se tornarem aquilo que devem ser. Paulo, o apóstolo, diz na sua segunda carta aos coríntios diz que “se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas velhas passaram e tudo se fez novo”. Percebe-se aqui o quanto o filme procura estabelecer a mudança perpetrada pela relação com o messias. 

Outra referência curiosa é o dogma da Trindade. A personagem “Trinity” possui relação. A primeira vez que ela se encontra com Neo, ele diz: “Achei que você fosse um homem”. Ela responde: “Todos acham isso”. Quando da morte de Neo, ela o ressuscita. Pai, Filho e Espírito Santo são um. Se o filho ressuscita, o Pai e o Espírito ressuscitam, ou seja, a própria trindade ressuscita. 

Em suma: o filme é uma obra bastante incomum. Os irmãos Wachowski conseguiram trabalhar conceitos extremamente complexos e inovaram bastante no campo visual. O filme é um grande acontecimento. É um prato feito para aqueles que admiram filmes polifônicos, ou seja, que conseguem perturbar por aquilo que insinuam, seja de maneira direta ou indireta.

terça-feira, janeiro 22, 2019

Bolsonaro e as ideias pequenas

"Ele me dá medo".
"O Brasil é um grande país. Merece alguém melhor." 

Robert Shiller, professor na Universidade de Yale e Prêmio Nobel de Economia, falando sobre Bolsonaro

O Brasil é um país imenso. Grandioso por natureza. Escolhido por Deus. Com vocação mítica para o futuro, com fortes propensões para o sebastianismo. Ele é assim evocado nos arroubos mais pueris em momentos de Copa do Mundo; cantado na letra do hino, que poucos entendem dada a complexidade das amarras sintáticas e as palavras eruditas que não fazem parte do repertório do povo. É também o país das incongruências. Dos sortilégios. Há uma grande energia potencializada no povo. Todavia, essa força não é administrada para os grandes projetos, para a construção de uma identidade civilizatória.

Ouvindo as repercussões do discurso de Jair Bolsonaro no Fórum Econômico de Davos, na Suiça, fiquei pensando algumas coisas. Pela primeira vez, um líder de um país latino-americano teria a honra de discursar na abertura dos trabalhos.  Era uma chance de ouro para voltar maior de lá, de exorcizar de vez a crise que derrete o seu inconsistente governo. O discurso seria importante para indicar a tônica das negociações. Em outras palavras, criaria um clima, um ambiente para cumplicidades e entrosamentos. Em Davos, o líderes do capitalismo financeiro global estariam presentes - com a exceção de Trump, que tem criado um clima diverso dentro do bloco do grande capital. Os economistas laureados; os investidores opulentos; os banqueiros habilidosos em fazerem dinheiro; os economistas com o faro apurado para detectar cenários, todos eles estariam com os olhos atentos para o capitão. 

Criou-se grande expectativa em torno desse discurso. Todavia, a grande questão é o responsável pelo discurso. Alguém que durante a campanha eleitoral fugiu dos debates. Que cancela entrevistas; que foge de jornalistas; que busca driblar a imprensa; que seleciona as perguntas para que estas sejam cômodas e estejam em seu nível. Em outras palavras, alguém que possui uma formação mediana e uma verbalização monocórdia. Se ele tivesse oportunidade, certamente teria declinado do convite. Teria arranjado um atestado médico. Não o fez, pois teria uma repercussão negativa. Enganou durante a campanha, não poderia enganar agora o mundo. Ele sabia que a tarefa era maior do que ele. O posto que ocupa possui um altura em metros, enquanto ele possui a estatura medida em milímetros. 

Segundo o jornal espanhol El Pais, seu discurso (de fala mesmo) não durou mais do que oito minutos. Inicialmente a ideia era que falasse de 30 a 45 minutos. Os anúncios para apresentação da autoridade, conforme a praxe do evento, duraram quinze minutos. O presidente, por sua vez, fez um discurso pífio de minutos contados. 

Outro aspecto que chama a atenção é o conteúdo do discurso. É importante atentar também para o que não foi dito. Em todo discurso, há elementos explícitos, mas há também elementos implícitos, que podem ser depreendidos por meio das pistas, os pedaços de fatos, de acontecimentos  deixados na enunciação. O exercício de encontrar os elementos implícitos é uma habilidade que se adquire praticando ilações. 

Durante a campanha - e mesmo em Davos - Bolsonaro e sua trupe antiglobalista repetiu de maneira sobranceira, numa espécie de nacionalismo piegas e alienado, que "o Brasil está acima de tudo e deus acima de todos". O que se viu no discurso de Bozo foi justamente a subserviência, o entreguismo das "repúblicas de bananas". Bolsonaro pintou um quadro de que o Brasil é um país colapsado, devastado. Há violência por todos os lados. É como se o simples fato de andar na rua fosse um perigo; que vivemos em uma selva. O presidente afirmou que o país está sendo arrumado para que as famílias ricas do planeta possam visitá-lo.

Não há novidades no discurso do Bozo. Há muitos truísmos; mais do mesmo; há pequenez de alguém que ganhou a eleição com fakes news e acha que ainda está em campanha. Há uma fala grávida de puerilidade, como se ele fosse um colegial despreparado e estivesse apresentando um trabalho para a classe. A fala é pausada. Há intervalos, demonstrando insegurança. Ataques infantis à esquerda. Uma teimosia tola em afirmar que o país vai fazer negócios "sem viés ideológico". O simples fato de afirmar isso de maneira incontida já firma um compromisso ideológico. Não existem ideias neutras. Discursos neutros. Se não existe "viés ideológico" em seu governo, ele deveria parar de falar "bolivarianismo", deveria parar de falar que "a esquerda não vai voltar mais ao poder".

O primarismo de Bolsonaro deixa a entender que somos um país de desvalidos. Que estamos clamando para que os investidores se apresentem por aqui para comprarem nossos produtos naturais. Temos florestas; temos rios; "temos bananas"; temos florestas imensas e até um Pantanal. Sim! Todos sabem disso. Segundo ele, "O Brasil é um paraíso". Por trás disso, há a mítica ideia de que o Brasil é um reino encantado. Uma terra de fábulas. Um Éden tropical. Somos a selvagem, mas dócil nação acolhedora. Não temos nada a oferecer a não ser os nossos recursos, nossos corpos e a exploração da força de trabalho barata do nosso povo. Na sua pobre concepção, o Brasil não possui riquezas, tecnologia de ponta, empresas estatais grandiosas, capazes de promoverem desenvolvimento e bem estar-social.

Em resumo, é como se Bolsonaro dissesse: "Venham! Venham para a grande feira! Vamos entregar tudo para vocês. Está tudo pronto! Venderemos tudo! Privatizaremos! Faremos reformas para facilitar o fluxo de capitais e apropriação das riquezas construídas pelo estado nacional. Guedes será o timoneiro! E eu, por não possuir competência, ficarei de cá falando de ideologia de gênero, marxismo cultural e viés ideológico. Somos galinhas e o nosso quintal é grande demais. Peguem tudo".

segunda-feira, janeiro 14, 2019

“Os sete enforcados”, de Leonid Andreiev

"Era estranho pensar que tanto cuidado humanitário e tanto esforço estavam sendo empregados para enforcar pessoas; que o ato mais insano da terra estava sendo cometido com tanta simplicidade e eficiência". (p. 150)

“Os sete enforcados” foi o último livro que li em 2018. Nunca havia lido nada desse autor. Cheguei a Andreiev por causa de uma lista feita por Graciliano Ramos. No livro  O velho Graça, de Dênis Moraes, encontrei uma relação com os livros fundamentais na visão do autor. Como sempre me interessei pela literatura do autor de Vidas Secas – e o tenho na mais alta estima -, ler Andreiev, bem como as outras obras da relação, passou a ser um dever, tornou-se uma obrigação. Fui à cata do livro. Encontrei-o na Estante Virtual. 

Sua literatura surge dessa estrutura nefasta, tristemente nebulosa, melancolicamente amarga.

    Não é um livro volumoso. A literatura do russo não é grandes proporções. Escreveu pouco em sua curta vida. Nasceu em 1871 e morreu em 1979. Aos 22 anos, tentou o suicídio. Carregou, por conta do episódio, um efeito colateral da tentativa mal engendrada, uma moléstia que reduziu a sua vida. 

    Como muitos intelectuais de sua época, não tomou partido da Revolução Russa, como Gorki, por exemplo. O regime que substituiu o czarismo, parecia absurdo. À distância, observava a banalidade com que a vida passou a ser tratada. Antes da Revolução, havia organizado reuniões secretas. Flertou com o movimento revolucionário.  Acabou rechaçando a possibilidade de uma participação efetiva. 

Sua literatura surge dessa estrutura nefasta, tristemente nebulosa, melancolicamente amarga. O texto de Andreiev possui um movimento lento, medido. Cada palavra é enunciada com parcimônia, como se estivesse construindo uma arquitetura silenciosa. Consegui cintilações do estilo de Andreiev nos textos de Graciliano Ramos. O minimalismo do conto “O relógio do hospital”, do escritor alagoano, certamente possui muito da economia de palavras objetivando, unicamente, dizer o essencial. Aquilo que emudece o leitor. Há um drama mudo, intrínseco em cada palavra. Uma marcha da narrativa, que se avoluma pelo controle extremo do texto. As palavras possuem um valor fundamental. É preciso escolhê-las de maneira correta, certeira; não desperdiçá-las com lances imprecisos; que criam labirintos desnecessários, tornando o texto enfadonho, pouco objetivo. 

Outro escritor próximo do estilo de Andreiev, pela secura realista, é Varlam Chalámov. O autor de Os contos de Kolimá foi preso e acusado de conspiração durante o período stalinista. As pungentes descrições das agruras sofridas tornam evidente o quanto a vida humana pode se tornar secundária quando os totalitarismos fazem prescindir os direitos humanos, quando o diferente passa a ser como um número, uma “coisa” a ser eliminada. A visão fria de Chalámov, o realismo duro, sombrio, aproxima-o do autor de Os sete enforcados. As experiências descritas demonstram a engenharia da morte. As vidas humanas são tratadas como mulambos, rebotalhos; os sujeitos são tratados como escória, refugo, matéria sem préstimo.
Leonid Andreiev (1871-1919)

Andreiev, como alguém falou, é um “matemático do horror”. Sua mente era povoada por cores nefastas; tinturas de um mundo frio, onde a vida é um detalhe secundário. Andreiev é um psicólogo da agonia. Em certa passagem do livro em que o narrador afirma: 

“E torturava-se, não porque a Morte era visível, mas porque a Morte era visível, mas porque tanto a Vida quanto a Morte eram visíveis ao mesmo tempo” (p. 110). 

Essa dupla visão do autor, torna evidente um quadro do momento histórico em que ele vivia. A história de “Os sete enforcados” é bastante simples. Cinco jovens – três homens (Sergey Golovin, Werner e Vasily Kashirin) e duas mulheres (Tânia Kovalchuk e Musya) – são presos por atentarem contra a vida do ministro. O serviço de contra-inteligência do ministro acaba rastreando as intenções dos cinco jovens. Há dois outros sujeitos que são presos e enforcados com os jovens – Ivan Yanson e Mikhail Golubetz ou Tsiganok. Os dois eram criminosos comuns. Yanson havia assassinado o patrão; Tsiganok tinha uma vida toda ligada às práticas delitivas. 

O livro possui doze capítulos breves. Toda obra pode ser lida de um único lance, o que permite uma experiência de tirar o fôlego. Não há nada de extraordinário no mote da história. Outro escritor com a mesma tema não conseguiria tão grandes efeitos. O extraordinário do livro é a investigação psicológica que o narrador faz dos sujeitos solitários antes do enforcamento. Inundados pela solidão das celas, as personagens analisam suas vidas. Enxergam-se pequenos. Nutrem receios.  São visitados pela insegurança. Jubilam. Alguns não admitem a intransigência imposta. Misturam-se emoções contraditórias. O que se deve pensar quando se está diante da morte? Quais fatos são os mais importantes? O que é a vida e quem tem o direito de liquidá-la? 

Andreiev escreve para denunciar a violência da pena de morte. Em “Os sete enforcados” percebemos o quanto a vida pode ser “coisificada”, relativizada, transformada em objeto; o quanto pode ser imolada pela tirania. Desconsidera-se a potência de cada pessoa – a sua história, sua ontologia, sua idiossincrasia; o que torna cada sujeito naquilo que ele é. Sendo cada sujeito um evento único na história do universo, a morte provocada pela força se torna uma aniquiladora do diverso e do pessoal.

sexta-feira, janeiro 11, 2019

Algumas considerações sobre “Lolita”, de Vladimir Nabokov


"Pois não há bem-aventurança na terra que se compare a acariciar uma ninfeta". 
Humbert Humbert

Lolita, de Vladimir Nabokov, não é uma obra literária comum. Certamente, tal definição não clarifica as ressonâncias da obra. O livro é controverso, de narrativa com passagens nauseantes. Por outro lado, o narrador possui uma erudição envolvente. Ele deseja nos capturar pela elegância, pelas blandícias de uma linguagem encharcada de poesia. 


                O livro Lolita, escrito em 1955, é um evento na vida de Nabokov. O escritor russo, radicado nos EUA, escreveu o livro em inglês. Sua família havia fugido da revolução bolchevique, com a qual destoava. Nabokov não encontrou uma editora que publicasse sua controversa produção literária. Seria literatura ou pornografia?

                Por fim, uma editora francesa acostumada a publicar livros pornográficos, topou o empreendimento. Ou seja, Lolita surgiu para os leitores como uma obra com caráter pornográfico. Certamente, se esse era o objetivo, os leitores ficaram decepcionados. As referências à obscenidade, ao libidinoso, estão encobertos por uma camada grossa de tinta poética. Sabe-se que o narrador faz menção ao que estamos pensando, mas há um caráter implícito potencializado pela imaginação de quem ler. 

                Com o tempo, descobriram-se as qualidades da obra. Havia ali virtudes de uma obra universal. A literatura é literatura é capaz de produzir efeitos únicos. Ela fornece, por meio de verossimilhanças e inverossimilhanças, uma visão mais nítida dos fenômenos que constituem a vida humana. O que a ciência não é capaz de dizer por possuir limitações, a literatura não encontra limites; grita alto a plenos pulmões. 

                A pedofilia é um tema tabu na sociedade moderna. Segundo a Organização Mundial de Saúde, a pedofilia é uma doença; um transtorno psicológico. O pedófilo, por tanto, é aquele sujeito que possui atração sexual por crianças e adolescentes pré-púberes. Não existe o tipo penal “pedofilia”. Não há uma lei específica que aborde o tema. Ninguém pode ser punido por ter uma doença. Todavia, quando o pedófilo materializa a sua patologia, configura-se a tipicidade penal. Nem todo pedófilo é, pois, um criminoso. É uma questão séria. Não há cura para a pedofilia. O tratamento é clínico. 
Vladimir Nabokov (1899-1977)

                O personagem do livro de Nabokov tem consciência desse fato. Ele premedita situações. É um estrategista minucioso de como deve proceder para ter a jovem que ele denomina Lolita. A única voz que escutamos em todo romance é a sua. Sabemos o quanto ele é habilidoso com as palavras. É um erudito; um catedrático, que explora com destreza a linguagem. O leitor é conduzido, impelido, como um animal indo ao matadouro, sem dá conta do fato. Por fim, torna-se simpático à sua lírica enfeitiçante. 

                Humbert Humbert é um tipo sarcástico, capaz de produzir um humor muito fino. Ao prestarmos atenção ao seu palavrório refinado, fica claro o gênio narrativo de Nabokov. Ele possui um controle absoluto da história. Coisa assim, eu somente havia encontrado em Machado de Assis. Aliás, há uma correlação de caráter entre Bentinho e Humbert Humbert. Bentinho é um ciumento, capaz de vislumbrar fantasias; um parcial sujeito que busca convencer o leitor da culpa de Capitu. Humbert Humbert também procura deixar evidente a sua obsessão, que chega às raias do desespero. Diferentemente de Bentinho, ele tem consciência de sua condição. Mas a pergunta que surge é: As coisas se fizeram como ele conta, de fato? Lolita – parece – deixa-se dominar pelo minotauro sedento e irracional que é Humbert Humbert. Não ouvimos a sua voz, senão pela voz do narrador. 

                É importante entender, longe de qualquer moralismo, que é uma obra extraordinária. Um dos grandes livros da história da literatura. Pela temática espinhenta, é comum formularmos uma imagem defeituosa de Humbert Humbert e, por tabela, do próprio autor da obra. Nabokov é um gênio. Estava inspiradíssimo a escrever o livro. Era um estudioso que escrevia textos difíceis, fazia traduções do russo, dava aulas em mais de um lugar. Ganhava a vida com isso. Lolita deu-lhe fortuna. Tornou-o conhecido. E alvo de indisposições. 

                Lolita é uma “crueldade literária”. É belo. O estilo é elegante, ensolarado. Sentimos o frescor da linguagem. A voz sedutora de H. H. A sua capacidade de inebriar o leitor é um caso incomum. Por outro lado, o narrador sabe da zona perigosa em que se encontra. Faz de tudo para criar sensibilizações naquele que ler, que atua como juiz para escrutinar a sua insaciável obsessão. 

1. O jornal espanhol El Pais, o ano passado, trouxe uma reportagem que fazia referência ao caso de Sally Horner, sequestrada e maltratada por um pedófilo e que teria inspirado Nabokov. 

2. Em 1962, Stanley Kubrick produziu o filme Lolita, com roteiro do próprio Nabokov.